Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Fanatismo não é uma doença, mas pode comprometer a saúde mental

iStock
Imagem: iStock

Simone Cunha

Colaboração para o VivaBem

12/03/2021 04h00

Resumo da notícia

  • O fanatismo se caracteriza por uma crença ou comportamento que não admite refutação
  • É um comportamento disfuncional, mas não é considerado um transtorno mental
  • Entretanto, pode se tornar um distúrbio psiquiátrico, dependendo do prejuízo que a pessoa tem em sua vida
  • Fanatismo e problemas de saúde mental podem coexistir no mesmo indivíduo, sem serem necessariamente relacionados

A polarização observada em várias partes do mundo trouxe à tona um assunto muito complexo: o fanatismo. Intolerância, inflexibilidade e até atos mais violentos mostram que muita gente "passa do ponto" e não consegue conter seus excessos. O velho ditado de que futebol, política e religião não se discute talvez indique os três quesitos que mais atraem indivíduos exacerbados, podendo colocar o convívio social em risco.

Ainda assim, é importante considerar que o fanatismo não é classificado como uma doença. "Ele é um comportamento disfuncional, mas não é considerado um transtorno mental, e se caracteriza por uma crença ou comportamento que não admite refutação, que é defendida de forma obsessiva e apaixonada e que deixa muito pouco espaço para a tolerância às ideias contrárias", explica a médica psiquiatra Elisa Brietzke, orientadora do programa de pós-graduação em psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Apesar disso, o fanatismo pode sim se tornar um distúrbio psiquiátrico, dependendo do prejuízo que a pessoa tem em sua vida ou do impacto na vida de outras pessoas. Existem inclusive estudos que já o associam a questões psicopatológicas (esquizofrenia/psicose), podendo fazer parte do quadro clínico, de acordo com o psiquiatra Luan Diego Marques, especialista em terapia interpessoal pelo Prove (Serviço de Assistência e Pesquisa em Violência e Estresse Pós-Traumático), ligado à Unifesp, e professor colaborador da Faculdade de Medicina da UnB (Universidade de Brasília).

No entanto, fanatismo e problemas de saúde mental podem coexistir no mesmo indivíduo, sem serem necessariamente relacionados. "Existe uma crença errônea de que transtornos mentais predispõem ao fanatismo ou atos extremistas e violentos, mas isso não procede", confirma Brietzke.

Hooligans russos em jogo do campeonato local - Dmitry Korotayev/Epsilon/Getty Images - Dmitry Korotayev/Epsilon/Getty Images
Hooligans russos em jogo do campeonato local
Imagem: Dmitry Korotayev/Epsilon/Getty Images

Os riscos causados pelo fanatismo

O maior risco não é apenas para o próprio indivíduo, mas para os que estão em volta e para a sociedade como um todo. "Ele se torna perigoso porque tende a reunir grupos, considerando que precisa combater o outro lado, ou seja, que tem o direito de exterminar quem pensa diferente dele", alerta o psicólogo Fabricio Guimarães, doutor e mestre em psicologia clínica pela UnB e membro do Núcleo de Gênero e Psicologia Clínica e Cultura da mesma instituição.

O fanatismo político e religioso, por exemplo, na tentativa de produzir uma sociedade monolítica, coloca em risco a existência de populações inteiras, como genocídios. "Existem estudos envolvendo filhos e netos de sobreviventes do holocausto que mostra que esse tipo de experiência modifica o processamento do DNA dos neurônios, numa tentativa de adaptar o cérebro ao estresse, mas que acaba por predispor a diferentes transtornos mentais, especialmente depressão", informa Brietzke.

Além disso, comportamentos fanáticos podem deixar a pessoa mais suscetível a alguns fatores de risco para saúde mental. Por exemplo, quem se juntou a um culto e acredita firmemente na superioridade de um líder pode ficar mais exposto ao abuso físico, moral, financeiro ou sexual, o que sabidamente é uma causa de transtornos mentais. "Há ainda um prejuízo para o funcionamento interpessoal, afinal quem entra em um fanatismo (delirante) tende a não escutar a família ou pessoas próximas que queiram ajudar, devido a uma inflexibilidade e intransigência que vai afastando as pessoas", diz Marques.

Há um limite?

Comemorar um gol de maneira mais acalorada ou participar de uma discussão política de forma mais efusiva são situações cotidianas e que permeiam o universo social. Portanto, não são essas situações atípicas que apontam para o fanatismo. O limite é respeitar o limite do outro, ou seja, sua opinião ou preferência não pode agredir, diminuir ou ofender o outro. "O fanatismo provoca um enrijecimento de ideias e descarta a flexibilidade", aponta Guimarães.

Existem três traços que, combinados, definem a anormalidade do comportamento: intensidade, intolerância e incoerência. Quando o pensamento ou reação é muito discrepante das normas culturais do entorno e há acentuada intolerância aos pensamentos contrários, pode se dizer que se trata de um indivíduo fanático. O risco é que a radicalização está por trás de crimes de ódio e ataques terroristas, mas também de intervenções agressivas organizadas na internet e nas redes sociais.

Briga entre manifestante de oposição e manifestantes de apoio ao presidente Jair Bolsonaro em Brasília - ADRIANO MACHADO - ADRIANO MACHADO
Briga entre manifestante de oposição e manifestantes de apoio ao presidente Jair Bolsonaro em Brasília
Imagem: ADRIANO MACHADO

Vale a pena buscar ajuda

Abandonar comportamentos fanáticos pode ser estressante, principalmente quando isso acontece no contexto de grupos fortemente coesos, como fundamentalistas religiosos ou políticos. Muitas vezes, é preciso suporte externo durante esse processo. O grande desafio é fazer a pessoa compreender a importância de buscar apoio, pois, em geral, o fanático não enxerga seus excessos como um problema.

Alguns perfis fanáticos podem se apresentar como pessoas muita ansiosas e, em alguns casos, com dificuldades de controlar seus impulsos, portanto, o tratamento com psicoterapia e até medicação pode ser necessário. "O não tratamento pode fazer com que essa pessoa se isole e tenha outros transtornos como piora da ansiedade ou desenvolva depressão, além do risco de uso de substâncias", enfatiza Marques.

É importante destacar que o fanatismo pode se acentuar ou não com o tempo. Brietzke explica que o fanatismo não acontece na infância, pois nessa fase os cuidadores conduzem a criança. Porém, alguns autores sugerem que a exposição a situações estressoras, especialmente maus tratos, pode predispor o indivíduo ao fanatismo na vida adulta. Já a adolescência é um período vulnerável para o problema, pois o questionamento dos valores dos pais e a busca por novos referenciais identitários é parte desse período. Para se ter ideia, diferentes grupos no mundo já estudam como prevenir o extremismo e a radicalização, com o objetivo de reduzir o risco de evolução do fanatismo para comportamentos violentos.