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Genes de origem africana diminuem chances de conseguir doador de medula

Marcadores do sistema imunológico variam pelo mundo e oferecem desafios diante da miscigenação - Getty Images/iStockphoto
Marcadores do sistema imunológico variam pelo mundo e oferecem desafios diante da miscigenação Imagem: Getty Images/iStockphoto

Gilberto Stam

Da revista Pesquisa Fapesp

19/12/2020 04h00

Encontrar um doador de medula óssea para transplante, por si só, não é fácil: é preciso passar por uma espécie de loteria genética na qual a compatibilidade é dada por um grupo de genes envolvidos na resposta imune. Eles são conhecidos como HLA, sigla em inglês de antígeno leucocitário humano. Mas as chances de sucesso não são iguais para todas as pessoas.

Um estudo publicado na revista Frontiers of Immunology no dia 6 de novembro estima que, no Brasil, a probabilidade de uma pessoa ter genes compatíveis com um possível doador no Registro de Doadores de Medula Óssea (Redome), um banco de dados financiado pelo Ministério da Saúde, é de 19,2% para pessoas com HLA de origem europeia e 4,4% para quem tem HLA de origem africana.

?Na população miscigenada brasileira, os genomas são mosaicos de ancestralidade variada e a origem do HLA não está associada diretamente à cor da pele?, diz o biólogo Diogo Meyer, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e coordenador do estudo. É diferente do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, onde a população é pouco miscigenada e o gene HLA de origem africana geralmente está presente em pessoas que aparentam ser afrodescendentes.

Quando os pesquisadores analisaram a raça autodeclarada nos registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), muitas vezes associada à cor da pele, a desigualdade nas chances de encontrar um doador foi menor: 16,9% para pessoas autodeclaradas como brancas e 7,3% para pessoas autodeclaradas como pretas. Isso acontece porque, como efeito da miscigenação, uma parcela das pessoas de pele clara carrega os genes HLA africanos, diminuindo suas chances de conseguir um doador, enquanto uma parcela das pessoas de pele escura carrega os genes HLA europeus, aumentando sua probabilidade de encontrar alguém compatível.

Uma limitação da pesquisa é que ela não foi feita com pacientes do Redome, mas com material genético coletado e armazenado em dois bancos de dados brasileiros, um com quase 3 mil pacientes de anemia falciforme de diversos locais do país e outro com cerca de 5.300 indivíduos saudáveis da cidade de Salvador (Bahia), Bambuí (Minas Gerais) e Pelotas (Rio Grande do Sul).

Os pacientes com anemia falciforme, doença hereditária que altera o formato dos glóbulos vermelhos e é mais comum entre pessoas de origem africana, estão entre os mais afetados pela desigualdade na representação. O transplante entre pessoas de fora da família não é aprovado para essa doença, mas alguns estudos sugerem que ele funciona. Mesmo que o procedimento seja autorizado, pacientes de ancestralidade africana enfrentarão maior dificuldade em conseguir um doador, um problema que na Europa e nos Estados Unidos é semelhante.

?O estudo ilustra a desigualdade no acesso ao transplante de medula óssea conforme a origem geográfica das pessoas, mas não diz o que acontece de fato com os pacientes do Redome?, alerta Meyer. Para fazer o estudo, os pesquisadores confrontaram a ancestralidade dos indivíduos e os genes HLA que eles carregam com a lista dos inscritos no Redome, permitindo verificar quantos doadores havia para aqueles pacientes hipotéticos.

No caso da medula óssea, são necessários pelo menos 10 cópias de HLA iguais —cinco de origem materna e cinco de origem paterna — para que o organismo do paciente não identifique as células do doador como uma ameaça, levando à rejeição do órgão. ?O estudo mostrou que a população brasileira tem variação ampla, e muitas das pessoas com ancestralidade africana teriam dificuldade para fazer o transplante, caso ele fosse necessário.?

Procuram-se doadores

?Para diminuir essa desigualdade, seria necessário recrutar mais pessoas afrodescendentes, que estão sub-representadas nos nossos bancos de dados?, diz a hematologista Danielli de Oliveira, uma das autoras do estudo e coordenadora técnica do Redome.

A instituição identifica doadores compatíveis para pacientes com indicação de transplante que não têm doador na família e, após a realização de testes clínicos e laboratoriais, viabiliza a coleta das células do doador em um hospital habilitado. No banco de dados do registro há 54,6% de doadores brancos, 23,4% de pardos e 7,2% de pretos, enquanto na população há 42,7% de brancos, 46,8% de pardos e 9,4% de pretos, segundo o IBGE.

Com 5,2 milhões de cadastrados, o Redome é o terceiro maior registro de doadores do mundo, atrás apenas de programas similares nos Estados Unidos e na Alemanha —o único mantido com financiamento público, por meio do SUS (Sistema Único de Saúde) — e faz parte de uma rede mundial com mais de 38 milhões de doadores cadastrados mundialmente. Desse modo, campanhas para incentivar o cadastro de afrodescendentes também beneficiarão pessoas de outros países.

Oliveira relata que, no início deste ano, um indivíduo de Altamira, no Pará, que havia se cadastrado no Redome em 2010, foi identificado como doador de um paciente da Europa. ?As pessoas continuam se cadastrando e doando, e isso é um alento. O Redome, reconhecido internacionalmente pela sua importância, é resultado de um esforço de toda a sociedade, de todos os governos?, lembra Oliveira.

Diversidade genética

Os genes HLA são os mais variáveis do genoma humano, algo que favorece o reconhecimento de diferentes tipos de vírus e bactérias pelo sistema imunológico, mas torna mais difícil a compatibilidade entre paciente e doador de órgãos. No entanto, os genes HLA de origem africana são ainda mais variados do que em outras populações, o que explica em parte a maior dificuldade de pessoas com essa ancestralidade conseguirem doadores.

A maior diversidade genética das populações afrodescendentes está relacionada com a forma como a espécie humana se espalhou pelo mundo. Como seu lugar de origem é a África, os grupos que rumaram para outros continentes levaram apenas uma pequena fração da variabilidade genética da população que ficou para trás.

Quando um desses grupos fincava raízes, uma parcela se destacava e seguia em frente, em busca de melhores perspectivas em outras paragens, mais uma vez perdendo variedades de genes pelo caminho —inclusive do HLA —, em um processo conhecido entre evolucionistas como gargalo seriado. ?Histórias evolutivas distintas resultam em arquiteturas genéticas diferentes, e essa diversidade pode impactar as políticas públicas e a saúde das pessoas?, diz Meyer.