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Além do fogo: as sequelas que queimaduras deixam na vida de sobreviventes

Adriana Lua sofreu queimadura térmica em 2018 por causa de uma panela que pegou fogo - Arquivo pessoal
Adriana Lua sofreu queimadura térmica em 2018 por causa de uma panela que pegou fogo Imagem: Arquivo pessoal

Vanessa Centamori

Colaboração para VivaBem

13/10/2020 04h00

Entre janeiro de 2015 e julho de 2020, houve cerca de 86,9 mil atendimentos ambulatoriais e mais de 1 milhão de atendimentos hospitalares só por meio do SUS (Sistema Único de Saúde) para casos de queimadura, segundo dados do Ministério da Saúde.

Quando se trata dessa questão, é comum pensar em fogo ou em acidentes com panela. Tanto que as queimaduras térmicas —provocadas por agentes com calor direto, como água quente, borra de café, chapinha e lareiras— são as mais conhecidas.

Tais casos são, inclusive, os mais comuns no cotidiano, resultando na maior parte das entradas de queimados no Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, localizado na zona leste de São Paulo, que é referência nacional em tratamento de queimaduras.

Dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo apontam que, na instituição, as lesões térmicas por contato, escaldo e calor corresponderam a 68% dos atendimentos em 2018 e 71% deles em 2019.

"Senti um calor e vi tudo laranja"

Adriana Lua - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Foram justamente queimaduras térmicas as que ocorreram com a youtuber Adriana Lua, 22, do Rio de Janeiro. Ela teve 40% do corpo queimado em um incidente que ocorreu em 16 de fevereiro de 2018. Naquele dia, a jovem estava em casa com o ex-namorado. Enquanto ela dormia, ele foi fritar nuggets, mas se distraiu e a panela começou a pegar fogo.

Acordada pelos gritos do ex, Lua entrou na cozinha. Sem saber que o utensílio doméstico tinha óleo, a garota pegou a panela, colocou na pia e ligou a torneira. Tudo explodiu. "Não senti dor de imediato. Senti um calor e vi que estava tudo laranja. Foi aí que eu entendi que, ok, estou pegando fogo. No que eu entendi isso, me joguei no chão e comecei a me debater", recorda.

Após o acidente, a estudante de nutrição só voltou à rotina na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) após cerca de dois meses internada no Hospital Samaritano da Barra. Caminhava das aulas para casa em um calor de 35ºC, usando malha compressiva, além de roupa e guarda-chuva de proteção UV.

Adriana Lua - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Ela conta que, antes das queimaduras, sempre foi uma pessoa diurna: amava tomar sol na praia e ter marquinhas de biquíni. Agora, se preocupa que as cicatrizes tragam maior risco de câncer de pele. "Sou muito neurótica com isso, pois sinto o sol me queimar, nunca senti isso antes", afirma.

Além disso, sobreviver ao fogo fez a garota se transformar: pintou os cabelos de rosa —cor que combina com suas cicatrizes, segundo ela mesma— e começou uma nova fase, em que relata sua superação aos mais de 623 mil inscritos em seu canal no YouTube.

A superação também incluiu a sua luta contra a depressão, doença que teve por oito anos. "Não conseguia ver beleza em nada, era muito difícil. Depois do acidente, houve uma mudança de perspectiva no sentido de aprender a conviver e aceitar a dor", diz.

"Soube quanto vale ter as duas mãos e as pernas"

Rose Campos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Embora as queimaduras térmicas, como as de Lua, sejam as mais comuns, nem toda vítima de queimadura encostou em fogo. Existem aquelas pessoas que tiveram, de modo isolado, queimaduras elétricas. Isso aconteceu com a secretária Rose Campos, 31, que sobreviveu a uma descarga elétrica de 13.850 volts. Nesse tipo de situação, a física explica que é o fenômeno joule (responsável por liberação de energia) que produz o dano.

Em 7 de outubro de 2017, em um trecho afastado de uma fazenda, no município de São Novo Joaquim (MT), enquanto era eletrocutada, Campos sentiu que estava passando mal e caiu no chão rapidamente. Não houve dor no momento do susto em si (só depois), mas ela quebrou um dente em decorrência da queda, que pareceu ocorrer em câmera lenta.

Rose Campos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

A descarga elétrica, que resultou em 25% de seu corpo queimado, veio de uma rede de alta tensão e foi conduzida por uma antena de um celular rural, que a mulher segurava na mão. Na hora, não havia quem soubesse dirigir para levá-la ao hospital. No desespero, um rapaz que trabalhava na fazenda conduziu uma caminhonete mesmo sem saber pilotá-la, levando a vítima até o pronto-socorro mais próximo, no município vizinho, de Nova Xavantina.

O trajeto, que levava normalmente em torno de 50 minutos, demorou duas horas. A paciente foi transferida mais tarde para o Instituto Nelson Piccolo, de Goiânia (GO). Ela superou 30 dias de internação na capital de Goiás, usou malha compressiva e passou por uma soma de 19 cirurgias —sendo a mais dolorosa delas a remoção de uma das falanges do segundo dedo do pé direito.

Além disso, hoje a mãe de família tem movimentos debilitados na mão esquerda, mas sente gratidão, pois o membro recebeu uma sentença de amputação que nunca se cumpriu. "Soube quanto vale ter as duas mãos ou só uma, mas também o quanto valem as pernas, pois em determinado momento [após uma cirurgia para enxerto] precisei ficar 20 dias em uma cadeira de rodas", comenta Campos. "Com isso, consegui colher os frutos de cada etapa e entendi que o que eu vivo hoje é um presente", conclui.

"A gente percebe a mudança no olhar das pessoas"

Ronaldo Gonçalves - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Em 23 de agosto de 2017, Ronaldo Gonçalves, 55, trabalhava em uma mineradora em Crixás, interior de Goiás, quando houve uma explosão em um moinho, que lançou um líquido quente com produtos químicos abrasivos em cima dele. Como consequência, o trabalhador teve graves queimaduras químicas. Como o nome já diz, essas são causadas por componentes químicos, que podem ser ácidos (como o ácido sulfúrico) ou básicos (soda cáustica).

Todavia, além do dano químico, Gonçalves também teve queimaduras térmicas devido à temperatura alta envolvida no equipamento da mineradora. Seu caso é exemplo de que queimados podem ter mais de um tipo de lesão de uma só vez.

Ronaldo Gonçalves - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Gonçalves relata que não perdeu os sentidos no momento da explosão, mas sentiu dor intensa e viu bolhas grandes aparecendo e se rompendo nos braços, nas mãos e em várias partes do corpo. A mineradora tinha emergencistas a postos e ele foi levado a um pronto-socorro local. Teve 45% do corpo queimado e fez inúmeras cirurgias na capital Goiânia, para onde se mudou permanentemente.

Assim como muitos queimados, como parte de seu tratamento o sobrevivente vestiu uma malha compressiva. Com isso, vieram muitos olhares tortos. "A gente percebe a mudança no olhar das pessoas, é algo que incomoda. Mas no meu caso, pensava: 'é assim mesmo e vai passar' e, de fato, passou", conta Gonçalves, que ressalta ter recebido nos momentos mais difíceis ajuda do filho e da esposa, essa que "fez papel de quatro enfermeiras, 24h por dia".

Como se define o grau de queimadura?

Queimaduras de primeiro grau atingem somente a camada mais superficial da pele —a epiderme— causando apenas uma reação inflamatória ao excesso de calor. A lesão arde, é avermelhada e cicatriza em 5 a 7 dias. Basta passar creme hidratante para aliviar o ressecamento ou desconforto. Por exemplo, uma queimadura de sol.

Queimadura na mão - iStock - iStock
Imagem: iStock

Já as queimaduras de segundo grau podem ser de dois tipos:

- superficial: alcança a derme papilar, que é a parte superficial da derme (camada intermediária e mais espessa da pele). Geralmente gera bolhas e há possibilidade de cicatrização natural entre 10 a 14 dias. Exemplo: líquido quente ou uma queimadura de sol "mais séria", que forma bolha.

- profunda: afeta a derme reticular, a parte mais profunda da derme, ao ponto de sobrar pouca pele para cicatrização. Não forma bolha e tem cor alaranjada, como a de um camarão. Pode provocar cicatrizes, repercussões sistêmicas e requerer até uma cirurgia de raspagem e enxerto. Exemplo: explosão por agentes inflamáveis, como álcool e gasolina

Por último, estão as queimaduras de terceiro grau, que são aquelas que queimam a epiderme, mais a derme papilar e reticular, podendo alcançar também gordura, músculo e a capa que reveste o osso (periósteo).

Geralmente, a vítima precisa passar por uma raspagem e enxerto, podendo haver sequelas sérias, uma vez que não há nenhuma possibilidade de cicatrização natural. Exemplo: choques prolongados de alta voltagem, explosões e incêndios.

Qual queimadura dói mais?

A lesão mais dolorosa não é a queimadura de terceiro grau, pois essa é indolor, conforme explica José Adorno, presidente da SBQ (Sociedade Brasileira de Queimaduras). Ele conta que, nesses casos, não resta mais comunicação com o meio interno, uma vez que toda a pele e todos os receptores de dor são destruídos.

Visto que a queimadura de primeiro grau só arde, a de segundo grau, portanto, é a que costuma doer mais do que os demais casos. Ela expõe as terminações nervosas, pois não atinge a pele por completo. Isso faz a manutenção e troca de curativos ser bem mais dolorosa.

O uso da malha

O uso da malha compressiva, que esteve presente na vida de Ronaldo Gonçalves, Adriana Lua e Rose Campos, serve para garantir a reestruturação celular da pele, evitando desuniformidades na área queimada durante a cicatrização. Feita sob medida, é bem apertada e diminui o aporte sanguíneo, retirando a circulação da derme (camada intermediária da pele).

Segundo Samuel Mandelbaum, dermatologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Taubaté e da Santa Casa de São José dos Campos (SP), tal mecanismo de compressão evita uma reprodução celular desenfreada, que pode originar uma cicatriz hipertrófica ou queloide.

Além disso, como a malha age por compressão contínua, deve ser usada pelo máximo de tempo possível —cerca de 24 horas por dia, para garantir seu efeito. Oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde), pode ser vestida em partes do corpo inteiro (braços, cabeça, rosto) e é indicada sobretudo para queimaduras de segundo e terceiro graus.

Os substitutos da pele

Pele de tilápia em queimadura - Divulgação/ Prefeitura do Rio de Janeiro - Divulgação/ Prefeitura do Rio de Janeiro
Pele de tilápia em queimadura
Imagem: Divulgação/ Prefeitura do Rio de Janeiro

Em casos de queimaduras de segundo e terceiro grau é necessário fazer uma raspagem ou desbridamento, processo que nada mais é do que uma limpeza da ferida para tirar pele morta e resíduos. O procedimento pode ser feito simplesmente com uma compressa durante o banho, por intervenção cirúrgica e até através do uso de pomadas e medicamentos que ajudam a remover o chamado tecido necrótico.

Após a raspagem, quando ainda não há chance do corpo cicatrizar a área queimada por conta própria, é realizada uma enxertia. Essa é uma cirurgia que cobre a parte lesionada com tecido saudável de outro local —geralmente das coxas ou do couro cabeludo do próprio paciente (enxerto autólogo).

O problema começa quando se trata de um grande queimado, que teve a maior área do corpo debilitada. Como está praticamente tudo lesionado, não resta tecido saudável para cobrir as lesões. Nesses casos, é comum o uso de enxertos com pele de cadáveres (aloenxerto), que funcionam como coberturas temporárias, auxiliando na recuperação natural do organismo.

Uma outra opção para substituto provisório de pele, mas que ainda está em estudo, é o xenoenxerto; ou seja, todo aquele que não vem da espécie humana. Um exemplo é a pele de tilápia, uma iniciativa pioneira de médicos do Ceará, que promete ajudar na cicatrização e diminuir a dor do paciente. Assim como a pele de rã —técnica descoberta na década de 1990 pelo médico goiano Nelson Picollo— ela não substitui cirurgia, mas cobre as lesões como curativo biológico temporário.

Membrana de celulose - Divulgação - Divulgação
Membrana de celulose
Imagem: Divulgação

Esse "curativo", por sua vez, protege a pele exposta durante o processo de cicatrização e evita a infecção, que é a maior causa de morte em pacientes queimados, de acordo com Luiz Fernando Pinheiro, cirurgião plástico do setor de queimados do Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio.

Por último, há ainda os substitutos sintéticos, que são aqueles processados pela indústria farmacêutica. Um exemplo é a membrana de celulose. De acordo com a companhia Vuelo Pharma, que fabrica tal produto, ele substitui provisoriamente a pele, regenera a queimadura com agilidade e ainda reduz a dor do queimado por isolar as terminações nervosas.

Outro importante invento sintético são as matrizes dérmicas (peles artificiais). Feitas a partir de colágeno bovino ou suíno processado, essas têm o grande diferencial de serem definitivas e não apenas um "curativo". O Brasil, inclusive, já usa essa tecnologia pelo SUS desde 2011, para tratar principalmente pessoas com queimaduras de terceiro grau.

O que fazer em caso de queimadura?

Se a lesão for térmica, coloque a região embaixo de água fria (mas não gelada ou com gelo). Molhe por vários minutos com um jato suave, para abaixar a temperatura da ferida. Por fim, aplique um pano limpo por cima e siga para o hospital.

Por outro lado, se a queimadura for química, retire a substância, utilizando luvas e um pano limpo, e remova roupas e acessórios contaminados. Lave a ferida com água corrente por pelo menos 20 minutos antes de se dirigir ao pronto-socorro.

Já se uma pessoa foi eletrocutada, desligue imediatamente a energia ou transmissão. Não tente dar a mão para a vítima, para evitar que você também sofra com a descarga elétrica. Se houver chama e o indivíduo pegar fogo, não o deixe correr, mas, sim, peça que ele pare, deite e role para abafar a chama.

  • NUNCA passe manteiga, água sanitária, borra de café, xixi, preparos caseiros e nenhuma outra substância sem consulta médica em qualquer tipo de queimadura;
  • A princípio, NÃO estoure bolhas, pois elas são importantes para a cicatrização; se a bolha for em um lugar onde a pele pode ser traumatizada, como no cotovelo, só recomenda-se que a fure com orientação médica.

Para evitar queimaduras

  • em tempos de pandemia de coronavírus, não use álcool em gel em casa, somente na rua; na sua residência, prefira sempre lavar as mãos com água e sabão;
  • se atente às crianças, sobretudo na cozinha, e evite usar toalhas de mesa compridas, pois as crianças podem puxá-las e derrubar tudo, incluindo alimentos ou pratos quentes;
  • não utilize álcool para acender churrasqueiras, lareiras ou espiriteiras;
  • fique atento às panelas no fogão, deixe os cabos sempre virados para dentro;
  • jamais jogue água em óleo quente, pois essa combinação é explosiva. Em caso de chama na panela, cubra com cuidado o utensílio doméstico com uma tampa ou pano úmido para cortar a entrada de oxigênio e abafar o fogo;
  • não deixe fios desencapados, muitas extensões ligadas ou vários aparelhos conectados em uma só tomada;
  • se estiver chovendo, não solte pipa para evitar ser atingido por raios. Já no caso de a pipa ficar presa em fios de postes elétricos, abandone-a, jamais tente pegá-la;
  • cuidado ao manusear produtos de limpeza e siga protocolos de segurança da empresa se você trabalha com substâncias químicas em indústrias ou laboratórios;
  • use protetor solar e evite se expor ao sol entre as 10h e as 16h horas, horários em que os raios UV são mais agressivos.

Para mais dicas, baixe o aplicativo Queimei, da SBQ, disponível para iOS e Android. Lá você confere números de emergência e a localização de hospitais especializados da sua região.

Referências: Sociedade Brasileira de Queimaduras; Manual de Prevenção de Queimaduras 2018; Folder de prevenção à incêndios do Corpo de Bombeiros de São Paulo; Revista Brasileira de Queimaduras; Leonardi et.al. Úlcera de Marjolin em cicatriz de queimadura: revisão de literatura. 2013.