Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Autoaceitação pode virar autocobrança: entenda melhor como isso ocorre

Cobrar de si mesmo uma autoaceitação rápida pode tornar o processo mais difícil - iStock
Cobrar de si mesmo uma autoaceitação rápida pode tornar o processo mais difícil Imagem: iStock

Dan Novachi

Colaboração para o VivaBem

29/08/2020 04h00

Resumo da notícia

  • As novas formas de comunicação virtual ampliaram a pluralidade de vozes presente no debate público levando ao rompimento da ideia de um único padrão
  • As novas percepções tornaram coletivas características individuais, reforçando a ideia de autoaceitação diante das diferenças
  • Crenças e padrões sociais aprendidos são importantes, mas podem se tornar prejudiciais senão forem condizentes com a experiência pessoal do indivíduo
  • A autocobrança pode intensificar sofrimentos existentes e atrapalhar um processo genuíno de aceitação

A popularização das redes sociais e seus debates trouxe luz a diversos temas que antes passavam batido, incluindo novas percepções sobre corporalidade, sexualidade e o relacionamento do indivíduo com suas próprias características. Novos padrões discursivos passaram a colocar em xeque os padrões sociais, sobretudo estéticos, e a reverberar a importância da autoaceitação, seja de características físicas ou mesmo da personalidade, o que é muito positivo.

Por outro lado, essa mesma popularização também parece ter desenvolvido padrões próprios e em alguns espaços e momentos a autoaceitação também parece figurar como algum tipo de status ou uma nova obrigação social, reforçando a necessidade de alguns comportamentos. De olho nesse debate e nos seus impactos à saúde mental, o VivaBem entrevistou alguns profissionais que lidam com esses aspectos para investigar esses limites mais a fundo.

O confronto entre antigos e novos padrões

A tendência de reproduzir comportamentos que vemos nos outros é muito comum e é isso que faz com que padrões e concepções sociais se perpetuem. Mas viver essas experiências novas gera a necessidade de criar espaços em si mesmo para se permitir e criar atitudes e mudanças. Assim, quando a experiência de alguém com determinados valores não é positiva, surge a necessidade de se readaptar.

"Sabemos que tudo que é novo costuma causar algum tipo de impacto social, gerando críticas e dificuldades de aceitação. Entretanto, se esse novo entendimento do 'eu' proporciona uma sensação de segurança, confiança e empoderamento pessoal, essas novas crenças e comportamentos devem ser reforçados", elucida Cláudia Regina Ribeiro, psicóloga clínica e membro do Ambulim do Ipq - HC/FMUSP (Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Além disso, Nadini Brandão de Sousa Takaki, psicóloga e professora do curso de Psicologia do Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo), relembra que antigas crenças e padrões também nos organizam e nos constituem, de modo que não podemos simplesmente descartá-los. Ela explica que ao longo de nosso desenvolvimento, aprendemos valores morais e outros comportamentos importantes para o resguardo de nossa saúde e bem-estar, bem como para uma boa convivência com os outros.

No entanto, a psicóloga ressalta que esses valores ou normas também podem se tornar prejudiciais se não forem coerentes com a nossa experiência pessoal; se forem aprendidos apenas a fim de atender às expectativas externas, aos padrões sociais. É aí que a autoaceitação pode se tornar algo mais complicado.

E quando vira obrigação?

Confronto com espelho autoaceitação - iStock - iStock
A autoaceitação precisa vir de dentro para ser efetiva e real
Imagem: iStock

Vemos tanta gente se autoaceitando e colhendo os frutos positivos disso que queremos também fazer parte desse movimento, e o mais rápido possível. Mas às vezes isso ocorre sem a pessoa levar em conta que é preciso rever e lidar com os padrões antigos que estão internalizados. Isso torna o processo mais demorado, o que pode ser frustrante.

Além disso, começar o processo apenas por um estímulo externo o torna mais complicado. "As experiências mais significativas de autoaceitação e de mudança e crescimento pessoal que observo são aquelas em que a aceitação surge como um desejo genuíno na pessoa; é como se brotasse de dentro uma necessidade de aceitar quem ela é, ao invés de uma prescrição feita por alguém que sabe o que é melhor para ela. É um florescimento genuíno", reflete Takaki.

"'Tenho que me aceitar' não é o mesmo que dizer 'eu sinto necessidade de' ou 'eu quero me aceitar'", acrescenta a especialista. E a obrigatoriedade autoimposta de começar logo a gostar de si torna o caminho da autoaceitação ainda mais difícil, já que a autocobrança pode levar a pessoa a intensificar um sofrimento já existente.

Algumas vezes aceitar-se é estar neutro

Para uma pessoa que se odeia, passar a se amar pode ser algo distante. Então por que não começar pelo meio do caminho? Nos discursos de aceitação do próprio corpo, é ai que o termo body neutrality aparece e enseja um novo olhar. "Para alguns de meus pacientes nunca poderei falar sobre amar, pois eles não se amam. Nós os incentivamos a pararem de lutar contra o seu próprio corpo. Quando você aceita o seu corpo, você passa a cuidar melhor dele. É esse autocuidado que é importante. É entender que o seu corpo é o seu único corpo e que você precisa cuidar dele", conta a nutricionista Sophie Deram, pesquisadora e doutora pela FMUSP e blogueira do VivaBem.

Deram reforça que muitas pessoas passam anos em guerra contra si próprios, acumulando insatisfações sobre o próprio corpo que reverberam em diversos prejuízos à saúde. Ela trabalha diretamente com pessoas com obesidade e com transtornos alimentares. Ela explica como há muitos estigmas que indivíduos com corpos considerados "fora do padrão" costumam carregar, em especial as pessoas com sobrepeso e que, infelizmente, esses discursos acabam sendo reforçados até mesmo por profissionais de saúde.

Para ela, a autoaceitação está intensamente ligada com autocuidado, em criar uma reconexão com si mesmo e com o seu corpo: "Não é um processo de uma hora pra outra: Ah, a partir de hoje eu vou me aceitar!", brinca. Trata-se de um caminho de autoacolhimento, compaixão, de ser gentil consigo mesmo. Deram também conta que nesse processo, muitas vezes o próprio indivíduo não se autoriza a vivenciar situações corriqueiras, como ir à praia, por exemplo. Adotando cobranças que são muitas vezes maiores do que as que a sociedade realmente imprime.

Estar em paz é parar de brigar contra si

Confronto com espelho autoaceitação - iStock - iStock
Muitas vezes a pessoa parece estar bem por dentro, mas se cobrando muito por fora
Imagem: iStock

"É preciso entender que essa questão de fazer as pazes com o corpo não é uma opção. Você não tem a opção de querer fazer guerra ou paz com o seu corpo. Ter saúde é estar em paz. Porque a saúde é o bem-estar não somente físico, mas também mental e social. E para ter saúde é muito importante se aceitar e se cuidar", pontua Deram.

Takaki ainda orienta que a autoaceitação não pode ser um discurso, precisa ser uma vivência, uma necessidade interna de se olhar com mais calma, delicadeza e transparência, com menos idealizações. Ela sinaliza que isso ocorre quando temos experiências humanas que nos valorizem como pessoa, que ofereçam liberdade para assumir quem somos sem máscaras ou representações.

"Neste sentido, encontrar grupos que sejam representativos de nossa condição é fundamental para elaborar vivências, sentir-se reconhecido, aceito e desenvolver autonomia. Compartilhar experiências, dificuldades, sentir-se representado e ganhar visibilidade torna-se possível quando encontramos pares para dialogar. Temos observado isso com o movimento de diversos grupos sociais atualmente", finaliza.

Por que algumas pessoas têm dificuldade em se aceitar?

Para Takaki a necessidade de ser aceito e sentir-se amado surge primeiro em relação aos outros para depois a desenvolvermos em relação a nós mesmos. A psicóloga lembra que é na primeira infância que nos diferenciamos do mundo e dos outros, que adquirimos a noção de que somos um indivíduo. A partir dessa consciência viria então uma outra experiência: a de sentir-se amado e considerado por outras pessoas significativas.

"Na medida em que se desenvolve, a criança pode experimentar aceitação ou não de quem ela é. No primeiro caso, tende a se desenvolver de forma segura e saudável em relação a si e aos outros; já no segundo caso, tenderá a se desenvolver de forma insegura em relação às suas experiências e a si mesma e, em função da necessidade de sentir-se aceita, poderá tentar se encaixar nos moldes que lhe foram impostos pelas pessoas das quais deseja receber afeição", explica Takaki.

Ainda de acordo com ela, ao longo do desenvolvimento da personalidade, também construímos nossa autoimagem, que nem sempre é uma representação realista de quem somos, mas sim de como nos vemos. "Esses sentimentos se desenvolvem nas relações sociais; podemos dizer que a experiência de ser aceito por outras pessoas leva à autoaceitação do mesmo modo que a falta de aceitação, principalmente por parte daqueles que são importantes para nós, nos leva a tentar nos encaixar nos padrões e valores externos para então sermos aceitos e valorizados", finaliza a psicóloga.

Amar-se no tempo presente

Em tempos em que também se discute muito sobre mindfulness —ou atenção plena, na tradução mais comum em português — a proposta de ressignificar nossa experiência do presente e viver plenamente o agora também dialoga bastante com a experiência de se entender e se aceitar como se é no momento atual.

"Na autoaceitação olhamos para o nosso momento atual, aceitando nossa essência e aparência. Entendendo também que é possível mudar durante esse processo, se assim desejarmos, com respeito e ampliando o autoconhecimento. Nesse movimento exercitamos o autoamor, reconhecendo nossas limitações, sentimentos, história de vida e os processos de resiliência emocional", analisa Ribeiro.

Ribeiro observa que a necessidade de buscar a si mesmo costuma estar associada a momentos de crise, quando nos deparamos com mais cuidado com o nosso íntimo, crenças, limites e medos. Nesses momentos passaríamos a entender melhor nosso valor pessoal, familiar e social. O fortalecimento frente a nossas essências tornaria possível a busca por novos recursos e mesmo novos vínculos.

Takaki ainda adiciona que uma pessoa que aceita a si mesma reconhece que é humana, tende a olhar para si com maior compaixão e flexibilidade, do mesmo modo que também tende a estender esse olhar para os outros com maior aceitação.