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Sem receber visitas, cartas ajudaram comerciante a se recuperar da covid-19

Manoel Regazzi exibe algumas das cartas que recebeu durante sua internação devido ao covid-19 - Arquivo pessoal
Manoel Regazzi exibe algumas das cartas que recebeu durante sua internação devido ao covid-19 Imagem: Arquivo pessoal

Renata Turbiani

Colaboração para o VivaBem

01/08/2020 04h00

Diagnosticado com covid-19 após retornar de uma viagem, o comerciante Manoel Regazzi, de 64 anos, morador de São Paulo (SP), passou 42 dias internado, 25 deles na UTI (unidade de terapia intensiva). Durante todo esse período ele não pode ter visitas de ninguém, mas recebeu mais de 40 cartas de amigos, parentes e até clientes lhe desejando melhoras e dizendo o quanto é querido. Para ele, essas mensagens foram o alento e o estímulo que precisava para lutar ainda mais e sair bem do hospital. No relato abaixo, Regazzi conta um pouco dessa história.

"Por volta do dia 15 de março, depois que retornamos de uma viagem para Minas Gerais, eu e minha esposa, a Rosana, nos sentimos indispostos. Ela estava com calafrios, febre e mal-estar, e eu com um pouco de coriza e uma leve dor no corpo. Inicialmente, achamos que era uma gripe comum e tomamos um antigripal, mas, como não passou, achamos melhor ir até o pronto-socorro do Hospital Santa Catarina.

O médico nos examinou e disse que poderia ser o novo coronavírus. Fomos liberados com a recomendação de ficarmos isolados em casa e retornar caso houvesse qualquer agravamento. Nos dias seguintes, a Rosana seguiu se recuperando bem, mas eu só fui piorando. No dia 22, acordei com muita dor de cabeça. Mais para o fim da tarde, senti falta de ar, e aí resolvi ir novamente para o hospital. Não me lembro de muita coisa desse dia, mas sei que cheguei lá e imediatamente fui socorrido, entubado e levado para a UTI.

O diagnóstico foi mesmo covid-19. Passei 42 dias internado, 10 deles em coma induzido e 25 na unidade de terapia intensiva. Quando acordei do coma, não sabia onde estava e nem o que estava acontecendo. Foi um momento bem difícil, mas acho que ainda pior para a minha família, que só tinha notícias sobre o meu estado uma vez por dia e através da equipe de enfermagem.
Em 16 de abril, fui para o quarto, e precisei fazer fisioterapia, porque fiquei muito tempo deitado, e tratamento fonoaudiológico, por causa da traqueostomia. Todo esse período foi de muita angústia e medo, mas teve uma coisa que me ajudou demais: as cartas que recebi da minha esposa, dos meus filhos e de parentes, amigos e clientes.

Cartas terapêuticas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

No hospital, apesar de todo o cuidado e atenção dos médicos, enfermeiros e psicólogos, eu estava sozinho, longe dos entes queridos, sem o carinho familiar. As palavras que eles escreveram foram tudo para mim. Saber que sou amado, que tinha tanta gente torcendo pela minha recuperação, me esperando e mandando boas vibrações, nossa, foi muito emocionante e gratificante. Tenho certeza que essas mensagens me deram ainda mais motivação e ânimo para lutar.

É muito bom se sentir abraço e ser confortado, mesmo que à distância e apenas com palavras. Sai do hospital no dia 3 de maio e trouxe todas as cartas comigo, as guardarei para sempre. Sou muito grato a cada um que se dispôs a doar seu tempo para me confortar em um momento tão complicado da minha vida. Jamais esquecei o carinho que eles tiveram comigo."

Cartas terapêuticas

As mensagens que Regazzi recebeu foram por conta do projeto Cartas Terapêuticas, idealizado pela equipe de psicologia do Hospital Santa Catarina, para que parentes e amigos possam escrever para pacientes internados por covid-19, relatando o que diriam se estivessem cara a cara com eles. O objetivo é aliviar o isolamento, o distanciamento e o sofrimento.

"Desde que começou a pandemia, discutimos bastante sobre como poderíamos aproximar o doente do familiar. Aqui, temos uma cultura de promover ações humanizadas, como visitas a qualquer horário, só que as regras impostas pelo coronavírus não permitiram mais isso. Os recursos tecnológicos eram uma opção, mas nem todo mundo tem facilidade em lidar com eles, e também queríamos algo que a pessoa pudesse ter contato durante e depois da internação, daí surgi a ideia das cartas", conta Giovana Rossi Lenzi, coordenadora do Serviço de Psicologia da instituição de saúde.

Cartas terapêuticas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Exemplo de carta da iniciativa do Hospital Santa Catarina
Imagem: Arquivo pessoal

A especialista relata ainda que a proposta vai além do cuidado com o enfermo: "Buscamos, neste momento tão difícil para todos, oferecer uma ajuda na organização emocional também de quem está ao seu redor do doente. As correspondências funcionam como um exercício terapêutico. De um lado as pessoas podem demonstrar seus sentimentos através da escrita e se fazerem presentes de alguma forma e, na outra ponta, o paciente internado recebe afeto e conforto, mesmo à distância. Essa simples ação resgata e fortalece os vínculos afetivos e garante motivação para enfrentar a doença".

Mais iniciativas como essa

Segundo Marcelo Kimati, psiquiatra, professor de Saúde Coletiva na UFPR (Universidade Federal do Paraná) e integrante da diretoria da Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental), é comprovado que os programas de humanização na saúde diminuem as taxas de mortalidade e tempo de internação e melhoram o prognóstico da patologia.

"Qualquer ação que visa diminuir a experiência individual e isolada do adoecimento, permitindo uma vivência mais social e compartilhada, bem como o acesso aos familiares e pessoas queridas, é altamente positiva e importante. No caso da covid-19, por ser recente, ainda não temos estudos sobre isso, mas baseado em outras experiências com aspectos semelhantes a análogos, certamente os resultados são parecidos", analisa o médico.

Por isso, vemos que outros centros médicos brasileiros têm investido em ações humanizadas para minimizar a dor provocada pela doença, e contribuir para a melhora mais rápida dos pacientes. Por exemplo, em Belém (PA), o Hospital Público Estadual Galileu (HPEG), gerenciado pela Pró-Saúde, realiza chamadas por vídeo para que quem está internado possa conversar com seu familiares.

No Hospital Ibiapaba CEBAMS, em Barbacena (MG), todas as refeições servidas pelo SND (Serviço de Nutrição e Dietética) às pessoas com diagnóstico ou suspeita de covid-19 têm sido entregues com uma mensagem de encorajamento e otimismo, confeccionadas e impressas através do setor de Comunicação da instituição.

Em São Paulo, o Hospital 9 de Julho disponibiliza tablets para os internos entrarem em contato com os entes queridos e ainda lhes presenteia com origamis com mensagens de apoio, escritas por enfermeiros, parentes e amigos, e selecionadas pela psicóloga do local.

#CompartilheUmSorriso - Divulgação/Canon do Brasil - Divulgação/Canon do Brasil
Equipe médica usando as fotos em seu uniforme para o projeto #CompartilheUmSorriso
Imagem: Divulgação/Canon do Brasil

E diversos hospitais, de Norte a Sul do País, como o de Campanha do Anhembi, na capital paulista, ainda adotaram a a ação #CompartilheUmSorriso, apoiada pela Canon do Brasil. Seguindo um movimento que surgiu nos Estados Unidos, médicos e enfermeiros estão usando fotos suas sorrindo presas aos uniformes, para que os pacientes internados com o novo coronavírus não vejam apenas máscaras, luvas, óculos e toucas quando olharem para eles.

Segurança total

Iniciado em abril, o programa Cartas Terapêuticas, do Hospital Santa Catarina, até o momento recebeu mais de 300 mensagens. Todas elas são enviadas por e-mail para a equipe de psicologia da instituição, responsável por imprimir, colocar em um envelope como uma logomarca especial, higienizar, entregar e ler para os pacientes que não estejam em ventilação mecânica ou sedados, caso eles ainda não tenham condições de fazer isso sozinhos.

"Essa ideia que deu tão certo que começamos até a expandir para outras áreas do hospital e também para a equipe de médicos e enfermeiros que estão na linha de frente do combate ao coronavírus. Fica visível no semblante de quem recebe as mensagens o encantamento e a alegria que sentem. Elas certamente ativam a sua força motriz e, consequentemente, contribuem para a melhora da saúde", completa Lenzi.