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Comoção ou luto coletivo? O que sentimos com notícias de mortes por covid

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Imagem: iStock

Sibele Oliveira

Colaboração para o VivaBem

12/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • O luto coletivo é provocado por grandes tragédias e envolve muitas pessoas ao mesmo tempo
  • Já comoção é uma mistura de emoções intensas diante de um acontecimento dramático
  • Vivemos luto não apenas por mortes, mas também outras perdas que temos na vida
  • As mortes causadas pela pandemia do novo coronavírus provocam sentimentos diferentes entre as pessoas

As centenas de mortes causadas todos os dias pelo novo coronavírus mexem muito com a gente. Ficamos com o coração apertado quando vemos histórias rompidas abruptamente e acompanhamos a dor das famílias que não podem nem se despedir direito de seus entes queridos. Há quem defina esse sentimento compartilhado por pessoas mundo afora como luto. Mas será que é isso mesmo?

Antes de nomear o que está se passando dentro de nós nesse momento, precisamos entender melhor o que é luto. Trata-se do processo de elaboração de uma perda significativa, que pode ser a morte de uma pessoa que amamos ou o fim de algo muito importante que faz parte das nossas vidas. Como por exemplo, uma doença grave que leva a saúde embora ou o término de um namoro, casamento ou amizade.

É o que muitas pessoas estão sentindo agora, tanto pelas mortes de pessoas próximas a elas quanto pelo isolamento e o impacto negativo na vida financeira. "O luto da pandemia envolve fatores além da perda de pessoas queridas. É a perda do nosso mundo normal, de atividades, de encontros", resume Maria Julia Kovács, professora e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).

Mas e quando a tragédia não acontece conosco?

Quando o rompimento severo de um vínculo, como a morte, envolve muita gente ao mesmo tempo, ocorre um luto coletivo. "As emoções são contagiosas, por isso se observa o efeito coletivo. Essa situação pode ajudar alguns, que passam a se sentir presentes na situação, acompanhados, compartilhando emoções, quebrando assim o isolamento", ressalta a psicóloga. Em outras palavras, a sensação de que todos estão no mesmo barco pode trazer algum consolo.

Luto coletivo é o que acontece após grandes enchentes, cujo saldo para os sobreviventes é a perda de familiares, amigos, casas e outros bens materiais ou de valor afetivo e sonhos. Ou em tragédias como o massacre na Escola Estadual Raul Brasil, o rompimento das barragens de Brumadinho, a queda do avião com os jogadores da Chapecoense, o incêndio da boate Kiss e do Ninho do Urubu. Também ocorre quando os grandes ídolos morrem, como o Ayrton Senna, o Ricardo Boechat e o Gugu.

Mas se já é difícil para cada um de nós entender exatamente o que sente ao ver as mortes em série provocadas pela covid-19, encontrar uma palavra para definir o que se passa dentro de milhões —ou bilhões — de pessoas é uma tarefa ainda mais complicada. Em geral, elas nos deixam comovidos e nos fazem pensar na finitude, na fragilidade da vida, nos nossos planos interrompidos e no mundo pós-pandemia, que é desconhecido.

A forma como sofremos é individual

Embora as reflexões e o pesar sejam amplificados pelo coletivo, não são generalizados. Até porque a realidade nos toca de maneiras distintas, com maior ou menor intensidade. Além de ficarmos condoídos pelas perdas humanas, somos invadidos pelo medo (por vários motivos), ansiedade, frustração, desamparo, revolta e outros sentimentos. "Alguns deles estão presentes ao mesmo tempo. Um caldeirão de emoções que podem ocorrer juntas, colocando em risco a saúde mental", diz Kovács.

Algumas pessoas sentem comoção - uma mistura de emoções fortes - e outras sofrem como se um pedaço delas tivesse sido arrancado. E há quem misture as duas coisas. "É possível ter comoção e luto ao mesmo tempo. Quando nos comovemos muito com uma situação, com uma história que ouvimos e isso desencadeia um processo de luto", explica Maria Helena Pereira Franco, professora de psicologia e coordenadora do laboratório de estudos sobre o luto da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

É a empatia que nos faz sentir tanto as perdas de pessoas que nem conhecemos. "Como a pandemia engendra um processo de luto pela perda da vida normal, ficamos muito sensíveis. E alguns de nós se solidarizam com o sofrimento dos que estão na UTI. Temos medo de que possa acontecer conosco o mesmo", destaca Kovács. Quanto mais grave for a situação, mais compaixão essas pessoas irão ter.

Mas há quem não se abale com a explosão de mortes e as imagens de desespero que vemos todos os dias. Existem possíveis explicações para isso. "As pessoas, em geral, têm dificuldade de entrar em contato com a sua dor. Por isso, algumas entram numa reação de negação. Fantasiam uma situação menor, menos importante do que é porque têm dificuldade de suportar a própria dor", sintetiza Franco. Outras simplesmente não têm empatia. Para elas, o esforço de se colocar no lugar do outro não vale a pena.

É preciso se proteger

Não é possível estimar a duração de um luto coletivo. "Não podemos medir em dias, meses ou anos. O luto é uma experiência que se manterá por toda a vida, em intensidades diferentes. Algumas pessoas não conseguirão elaborar as perdas e terão sofrimento excessivo, depressão e outros transtornos físicos e mentais. Outros poderão suportar melhor, adaptando-se à nova realidade", avalia Kovács.

As pessoas dentro do luto coletivo sofrem impactos diferentes, por isso a necessidade de cuidados precisa ser avaliada individualmente. "Vamos ter um período pós-pandemia com essa cicatriz. E não sabemos quando essa cicatriz vai fechar. Há um risco, talvez, de suicídios, de violência doméstica. A área da saúde mental será muito afetada", prevê Franco. Para alguns, essa cicatriz ficará aberta por muito tempo.

O desalento causado pela covid-19 é tão grande que muitos de nós já estamos ficamos doentes de estresse, tristeza e medo. "Para algumas pessoas, a angústia é maior e elas a expressam fisicamente. Então o aperto no coração, a sensação física é forte. Outras vão viver essa angústia na forma de uma dor de estômago ou uma insônia. É a linguagem que o corpo está usando para falar desse sofrimento", observa a psicóloga. Para nos protegermos desses males, devemos ter uma rotina saudável com fontes de alegria.

Não menos importante é cultivar a esperança, pois a desorganização interior provocada pela crise pode dar lugar a um novo equilíbrio. E fazer uma reflexão profunda. "Vai sobreviver a tudo isso quem tiver a capacidade de ressignificar seus sentimentos e relações. Quem tiver capacidade de doar amor, de perdoar, de esquecer coisas que não têm muito sentido, de deixar o orgulho e passar a dar valor às pessoas", conclui Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências e desastres e fundadora da RAP (Rede de Apoio Psicossocial).

Dicas para seguir em frente

  • Evite ver só as notícias que mostram hospitais superlotados, mortes e o sofrimento dos doentes e familiares. Dê atenção às informações sobre curas, ações de solidariedade. Tome cuidado com as fake news.
  • Procure ter uma rotina saudável. Ocupe o seu tempo com o trabalho e os cuidados da casa, faça exercícios físicos e de relaxamento e tenha momentos prazerosos como ouvir música ou ver filmes. Atividades virtuais em grupo também quebram a sensação de isolamento e desamparo.
  • Mantenha-se em contato com amigos e familiares, seja por telefone, redes sociais e até conversas na varanda. Não opte por sofrer calado. Ter uma rede de apoio torna o momento menos pesado.
  • Apegue-se à fé. Atividades religiosas e/ou espirituais nos fortalecem e ajudam a aliviar o sofrimento. Reuniões e cultos virtuais são uma boa opção nesse momento
  • Busque atendimento psicológico online, individual ou em grupo. Precisar de ajuda numa hora dessas não é fraqueza nem motivo de vergonha. Tome medicamentos, se for preciso.
  • Lembre-se de que essa crise aguda vai passar. Então será possível retomar a vida de antes. Talvez de forma diferente e até melhor.

Emergência emocional

O luto é mais difícil para quem tem um vínculo direto com as vítimas, principalmente quando não há o velório para se despedir. Essa é uma experiência traumática que muitas vezes impede a pessoa de seguir em frente. Couto acompanha de perto a dor de quem perde entes queridos em grandes tragédias. Quando era psicóloga da Cruz Vermelha, ela atendeu sobreviventes e familiares das vítimas da Boate Kiss e de Brumadinho, além de ter atuado no desastre aéreo que matou os jogadores da Chapecoense.

Agora ela presta, junto com um grupo de cerca de 40 psicólogos atendimento presencial, por telefone e vídeo conferência a quem não está conseguindo suportar a angústia pelas mortes da covid-19, no interior do Rio Grande do Sul. A equipe de psicólogos da RAP também acompanha o trabalho de profissionais da saúde mental em estados onde o número de mortes é mais alto, como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Pernambuco.

Couto afirma que em tragédias como a do novo coronavírus, os primeiros socorros psicológicos são eficazes para reduzir o sofrimento psíquico decorrente de um trauma. "Eles trazem um benefício pela intervenção precoce. Através deles, a pessoa pode acionar seus recursos internos, sua capacidade de resiliência para passar por esse processo dolorido de forma adequada. Podem reduzir significativamente o adoecimento de uma população que é assistida". Esse apoio emocional faz as pessoas se sentirem acolhidas, fortalecidas, calmas e esperançosas.