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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Com cardiopatia congênita, menino chegou a ter 3 corações ao mesmo tempo

Bárbara Therrie

Colaboração para VivaBem

10/06/2020 04h00

Rhiad, hoje com seis anos, é o que se pode classificar como um "colecionador de milagres". Portador de uma cardiopatia congênita rara, ele foi submetido, nos primeiros dois anos de vida, a 22 procedimentos cirúrgicos em sete meses de internação. Nesse período, ele teve falência cardíaca e foi colocado em uma máquina de coração artificial. Quatro dias depois, passou por um transplante, mas como o coração transplantado era pequeno, os médicos não fizeram a substituição e o deixaram como auxiliar. Dessa forma, Rhiad ficou 77 dias com três corações: o dele, o transplantado e o artificial. A seguir, o pai dele, o empresário Temer Saad, 38, conta a história do filho.

"Eu e minha esposa, a Weruska, já tínhamos dez anos de relacionamento, sendo quatro de casados, quando planejamos ter um filho. Ela engravidou do Rhiad em 2013. No quinto mês de gestação, ela foi fazer um ultrassom para saber o sexo do bebê. Estávamos na expectativa de saber se seria menino ou menina, mas saímos do exame preocupados com a informação de que nosso filho tinha um problema no coração.

Dez dias depois, a Weruska foi submetida a um ecocardiograma fetal e o Rhiad foi diagnosticado com uma cardiopatia congênita chamada de TCGA (Transposição Corrigida das Grandes Artérias). A médica que fez o exame nos encaminhou para uma equipe que tratava a doença. Minha esposa passou em consulta com essa equipe e os profissionais disseram que quando o Rhiad nascesse, ele precisaria fazer duas cirurgias, uma com seis meses e outra quando atingisse 12 kg.

Apesar do choque inicial por causa do diagnóstico, eu e a minha esposa ficamos tranquilos. Imaginávamos que o problema seria solucionado com as cirurgias. O restante da gestação foi normal, e no dia 18 de fevereiro de 2014, o Rhiad nasceu de um parto cesariana, pesando 4,3 kg e medindo 53 cm. Logo após o nascimento, ele foi submetido a um ecocardiograma que confirmou a TCGA. Ele ficou em observação e dois dias depois recebeu alta.

Rhiad a fez primeira cirurgia com seis meses

Como o Rhiad tinha excesso de sangue no pulmão por causa da cardiopatia, ele tinha crises respiratórias, caía a saturação e ficava com muita falta de ar. Ele precisou ser internado algumas vezes para receber oxigênio e tomar medicação para melhorar a condição pulmonar. Ele vivia ofegante e buscando ar, isso dificultava as mamadas. Ele não conseguia mamar direito porque ou ele mamava ou respirava. Como consequência, não ganhava peso.

Ao completar seis meses, fez a primeira cirurgia paliativa. Após essa intervenção, a capacidade respiratória do Rhiad melhorou significativamente, ele passou a se alimentar de forma adequada, a engordar e a se desenvolver dentro do esperado para a idade dele.

No dia 4 de agosto de 2015, levamos o Rhiad para a segunda cirurgia. Ele estava com um ano e meio.

Explicamos para ele que o barulho que ele fazia para respirar era um gatinho que estava dentro do coração dele e que era necessário retirá-lo. Chegamos ao hospital com meu filho em ótimas condições, e só fomos sair sete meses depois.

Essa segunda cirurgia foi feita com o coração do Rhiad parado. Após todas as intervenções, era esperado que o coração dele voltasse a bater naturalmente, mas não voltou e ele entrou em falência cardíaca. Eles colocaram o Rhiad em uma máquina de coração artificial, em coma induzido e na fila de espera para um transplante de coração.

Achei que meu filho tivesse morrido

Após o término da cirurgia, que durou quase 20 horas, os médicos vieram nos contar o que tinha acontecido. Foi desesperador. Chamei minha irmã e falei para ela me ajudar a organizar o funeral, achei que meu filho tivesse morrido, que tinha sido o fim. Eu imaginei que aquela máquina de coração artificial fosse apenas um artifício para nos acostumarmos com a perda dele.

Quatro dias depois da cirurgia, apareceu um doador, um bebê de oito meses com 10 kg. Eu fretei um jatinho para os médicos irem buscar o órgão em Florianópolis. Ao fazer a captação do órgão foi constatado que a informação estava errada. Na realidade, o bebê tinha 10 meses e 8 kg.

O esperado era que o bebê tivesse o peso parecido com o do Rhiad, 12 kg; 10 kg estava na margem aceitável, 8 kg estava abaixo. Mesmo não sendo o coração ideal por causa do tamanho, os médicos fizeram o transplante, mas em vez de substituir o coração doente pelo outro, eles usaram o coração transplantado como auxiliar.

Naquele momento, era a única opção que havia para salvar a vida do meu filho. Dessa forma, o Rhiad ficou com três corações: o dele, o transplantado e o coração artificial por 77 dias.

À essa altura, eu já tinha sido demitido do emprego e estava hospedado com a minha esposa na casa das minhas primas, em São Paulo. Nós éramos do interior, de Taubaté. Nossa rotina era super desgastante, chegávamos no hospital de manhã e só íamos embora à meia-noite.

O período em que o Rhiad ficou em coma foi muito complicado. Era horrível vê-lo inchado, com o peito aberto, cheio de aparelhos. Durante as visitas, fazia carinho e conversava com ele. Pedia para ele continuar tendo forças e lutando. Dizia que ele era muito amado e que a gente precisava dele.

Muitas vezes perdi a esperança de que ele iria sobreviver. Era notícia ruim o tempo todo, mas Deus nos sustentou através da minha união com a minha esposa, da fé, da Bíblia, das orações de amigos e familiares e do apoio da equipe médica.

No fim de outubro de 2015, eles tiraram o Rhiad do coma induzido e da máquina de coração artificial. Em sete meses de internação, meu filho passou por 22 procedimentos cirúrgicos. O quadro dele era extremo e se agravou com o passar do tempo.

Os dois rins pararam de funcionar, ele perdeu temporariamente os movimentos dos braços e das pernas, ficou desnutrido, de 12 foi para 7 kg, teve infecção generalizada, AVC hemorrágico e perdeu massa encefálica.

Meu filho recebeu alta e foi para casa com dois corações

Durante todo esse período, os médicos estudavam formas de encontrar uma solução para o caso dele. Em dezembro, foi constatada uma obstrução no coração natural do Rhiad, ele foi submetido a mais uma cirurgia e, dessa vez, apresentou uma boa melhora da função cardíaca. Aos poucos, as coisas foram melhorando. Em janeiro ele saiu do UTI para o quarto, e em fevereiro de 2016, ele recebeu alta e foi para casa com dois corações.

O Rhiad passou por um intenso processo de reabilitação com fisioterapia motora, respiratória, terapia ocupacional e fonoaudiologia. Ele recuperou os movimentos dos braços e das pernas e reaprendeu a andar, inicialmente, com o auxílio do andador, depois conseguiu ficar em pé, se segurar nas coisas, dar os primeiros passos, até que voltou a andar. Ele teve uma evolução surpreendente com o tratamento.

Dois meses depois da alta, fiquei em Taubaté trabalhando —tinha arranjado outro emprego— e minha esposa e o Rhiad foram para São Paulo fazer exames de rotina neurológicos e cardíacos. No primeiro, a Weruska me ligou para dizer que tinha dado tudo certo.

No segundo, ao atender a ligação imaginando que fosse ela, tomei um susto com a voz do cardiologista. Ele me disse que tinha duas notícias: uma boa e outra ruim.

A ruim era que tinha sido constatado que o coração transplantado estava muito fraco e precisava ser retirado rapidamente. A boa era que o coração natural do Rhiad tinha voltado a funcionar bem. Peguei minhas coisas e fui para São Paulo. Meu filho fez a cirurgia, ficou mais três meses internado e dessa vez voltou para casa só com um coração.

Rhiad tem uma vida normal e não ficou com sequelas

Após ter passado tudo o que passou, Rhiad se tornou um colecionador de milagres, ele não só sobreviveu, como tem uma vida normal e não ficou com nenhuma sequela.

Entre as idas e vindas das salas de cirurgias, escrevi um diário em que registrava tudo o que acontecia. As 120 páginas viraram o livro "O Colecionador de Milagres", uma obra cuja principal mensagem é mostrar que nenhum caso é impossível para Deus e que as pessoas nunca devem perder a fé.

Rhiad ganha uma irmã, a Rebeca

Jesus curou o coração do meu filho e recompensou a minha família em tudo o que tínhamos perdido e sofrido durante o tratamento dele. Hoje virei sócio de uma empresa, o Rhiad está 100% bem, e eu e minha esposa tivemos a Rebeca, uma filha linda e saudável".

Três corações ao mesmo tempo: como isso é possível?

Pedimos a Rodrigo Freire Bezerra, cirurgião cardiovascular da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo, e um dos médicos da equipe que atendeu Rhiad, para explicar o que é TCGA e comentar as cirurgias as quais o menino foi submetido.

O que é Transposição Corrigida das Grande Artérias?
É uma doença estrutural no coração, de origem congênita (a criança nasce com o defeito), e que caracteriza-se por alterações na anatomia cardíaca normal. Os átrios estão conectados aos ventrículos de forma discordante, bem como as artérias aorta e pulmonar também estão conectadas de forma invertida.

Quais os sintomas da doença?
Há pacientes que podem ser assintomáticos por vários anos, quando não possuem outras cardiopatias associadas. Entre os sintomáticos, cerca de 70% apresentam sintomas no primeiro ano de vida, como falta de ar, dificuldade para mamar, para ganhar peso e hipoxia (crianças cianóticas, coloração arroxeada da pele).

Por que o Rhiad foi colocado em uma máquina de coração artificial?
A cirurgia para correção anatômica é um procedimento complexo e demorado, como foi no caso do Rhiad. Esse trauma cirúrgico pode ocasionar comprometimento da função do coração. Além disso, a disfunção cardíaca pode acontecer também pela mudança na fisiologia que ocorre com a correção cirúrgica. Como após a correção cirúrgica, o coração apresentou disfunção, e dessa forma não gerava um fluxo sanguíneo adequado para os demais órgãos do corpo, foi necessária a instalação de uma máquina que faz o papel do coração e do pulmão. A utilização dessa máquina foi fundamental para a manutenção da vida do Rhiad até que conseguíssemos a recuperação do órgão disfuncionante ou a captação de um coração para transplante.

Por que o coração nativo do Rhiad não foi substituído pelo coração transplantado?
Nos casos de transplante de coração, geralmente é feita a substituição do coração em falência por outro com função normal. Mas existe uma alternativa técnica onde se utilizam dois corações ao mesmo tempo, chamado de transplante heterotópico. Os dois corações trabalham em paralelo e contribuem para manter um fluxo sanguíneo para todo o corpo.

Como a doação de órgãos é um problema crônico no Brasil, principalmente a doação de coração para crianças, sabíamos que seria muito difícil conseguir um órgão ideal para o Rhiad em um curto período de tempo. Ele foi incluído na lista de prioridade máxima para transplante na Central Nacional de Regulação e, para a surpresa de todos, surgiu uma oferta de coração em Florianópolis.

Avaliamos as condições do coração —a função cardíaca era boa, mas existia uma incompatibilidade de peso entre as crianças. O coração parecia pequeno para o Rhiad. Mesmo assim optamos pela captação do órgão e, no momento da cirurgia, tivemos que realizar o transplante em paralelo conectando os dois corações. Mais uma vez foi necessária a instalação da máquina coração/pulmão artificial para auxiliar na recuperação dos corações.

Por 77 dias, o Rhiad ficou com 3 corações: o coração nativo, o coração transplantado e a máquina de coração artificial. Como foi esse processo?
A evolução nesse período foi muito desgastante para a equipe médica, para os profissionais de saúde envolvidos, para a família e sobretudo para o Rhiad. Trata-se de um caso totalmente atípico e sem relatos parecidos na literatura médica. Aos poucos, fomos conseguindo progredir no desmame da máquina, até que foi possível desconectá-la e deixar o Rhiad com dois corações.

Por que o coração transplantado do Rhiad foi retirado?
O Rhiad era submetido a exames rotineiros para acompanhar a evolução clínica e monitorar a função dos corações. A cada novo ecocardiograma (exame de imagem que avalia o coração), notava-se uma melhora no coração nativo.

No último exame foi evidenciado que a função foi totalmente recuperada e que o coração transplantado estava praticamente sem função, inclusive já com a presença de alguns coágulos em seu interior. Foi realizado um novo procedimento cirúrgico para a retirada desse coração transplantado, deixando o Rhiad apenas com o coração nativo. Na literatura médica não se tem conhecimento de publicações de casos como o ocorrido com o Rhiad.