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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Meme do caixão em RS, buzinaço em hospitais: dá para desenvolver empatia?

Garçons parodiam meme do caixão no Divino, bar e restaurante de Gramado (RS) - Reprodução
Garçons parodiam meme do caixão no Divino, bar e restaurante de Gramado (RS) Imagem: Reprodução

Janaina Garcia

Colaboração para o VivaBem

14/05/2020 04h00

Em São Paulo, foram carreatas de gente contrária à quarentena, com direito a buzinaço em frente a hospitais. Em Brasília, foi o ato de profissionais da saúde, em homenagem a colegas e pacientes mortos pela doença e em frente ao Palácio do Planalto, recebido com xingamentos e agressões. Em Gramado (RS), garçons e o cliente de um restaurante se divertiram carregando os pratos ao som da música do "meme do caixão" —comumente usado para retratar situações limites ou até com risco de morte.

As cenas registradas nos últimos dias em meio a uma pandemia que já matou quase 300 mil pessoas pelo mundo, 12 mil delas no Brasil, causaram indignação e queixas contundentes, dentro e fora do ambiente das redes sociais, sobre a falta de empatia aos afetados pela doença.

A reportagem de VivaBem conversou sobre o assunto com dois psicólogos —Bruno Ferrari Emerich, professor do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e Natália Santos Marques, professora de Análise do Comportamento da UFC - Campus Sobral (Universidade Federal do Ceará) — para buscar entender o porquê de atitudes como essas, bem como se é possível desenvolver a habilidade de ser empático, ou seja, ser capaz de se colocar no lugar do outro.

Tem receita para ser empático?

Para os dois profissionais, não existe uma receita básica para se tornar uma pessoa mais capaz de se colocar no lugar do outro. Embora existam possibilidades de algum sucesso nas tentativas já que essa uma habilidade relacionada a aspectos culturais e políticos (trabalhados ou não desde cedo).

No entanto, ambos defendem, é possível, a partir do que já ficou demonstrado em pesquisas da própria psicologia, facilitar a compreensão desse tipo de comportamento quando, em vez de colocar a pessoa agente como beneficiária de uma ação empática, isso é feito em relação a pessoas mais próximas de sua própria experiência cultural —familiares ou amigos próximos, por exemplo.

"Recomendar que alguém use a máscara facial para evitar que os parentes idosos dessa pessoa fiquem doentes e corram risco de morrer pode ser mais efetivo do que esperar esse cuidado da pessoa em relação a ela própria ou ao mundo", exemplificou Marques. Esse ponto de vista é reforçado por Emerich, que aponta como a proximidade torna mais fácil dividir afetos e lembranças. "Isso faz com que a perspectiva da empatia se coloque de forma mais aquecida".

De acordo com Marques, pensar que alguns indivíduos tendem a ser muito mais egocêntricos que empáticos demanda "entender como a empatia funciona do ponto de vista particular, e, do ponto de vista coletivo, pensar em estratégias gerais que criem uma cultura que favoreça a empatia" —tal como a sugestão do uso máscara capaz de resguardar uma coletividade mais próxima de quem se tenta convencer a ser mais empático.

"Embora não tenhamos como criar uma história que funcione para todos, podemos pensar em estratégias para construir uma cultura que valorize o funcionamento cooperativo, entre pares, como valor ético importante e bem quisto dentro dela", disse. Marques explica que Isso não garante a criação de mais empatia em alguém, mas que aumenta a probabilidade de isso acontecer, por trabalhar um fator cultural.

Não se nasce com empatia: se desenvolve a habilidade de ser empático

Marques enfatiza ainda que a postura empática é se colocar no lugar do outro, e, não, tomar para si as dores dele. "Empatia não é algo com que se nasce: é uma habilidade, e, como tal, pode ser aprendida, desde que tenhamos tido, ao logo da vida, um conjunto de oportunidades para aprender. É algo que toca na dimensão das características pessoais e culturais —o quanto nossa história pessoal nos levou a esse caminho", afirma.

"Se eu crio a possiblidade de a pessoa refletir como se estivesse no lugar de alguém vitimado, incluir aí um fator emocional na visualização do problema — por exemplo, por que não pensar em um familiar? — traz um fato emocional que pode ser muito importante para que as pessoas tentem se importar mais", finaliza.

Sobre a empatia (ou a falta dela) relacionada a aspectos culturais, a professora citou um caso recente que também rendeu reações: o comentário do empresário e apresentador Roberto Justus, que, em março, em vídeo nas redes sociais, havia minimizado a abrangência da pandemia —na ocasião, eram 15 mil mortos em todo o mundo — ao reproduzir o discurso do presidente Jair Bolsonaro e de alguns empresários. "Nós estamos parando a economia brasileira, nós destruindo o que vinha se recuperando", alegou, à época.

"Quer dizer que faz a pessoa colocar como valor ético tão fundamental a economia, e não a vida, como outros agem, faz dela uma sociopata? Nada disso: ele pode ter entendido, ao longo da história de vida dele, como a economia se tornou algo tão fundamental ligado ao bom, ao bem, ligado à sobrevivência, no longo prazo. Talvez seja uma forma de entender sem noção das urgências, e porque aquilo não faz parte da história de vida dele —por exemplo, da mesma forma que faz para quem pensa economia a curtíssimo prazo, pensando em, simplesmente, ter o que comer", pontua.

Exemplo deveria vir de cima

Por outro lado, a psicóloga analisa que, além do fator cultural, a falta de empatia no cenário de pandemia no país tem de forma marcante também um fator político. Marques cita o ambiente de intensa polarização política vivida no país, nos últimos seis anos, é enfática: a comunicação do governo federal influencia não apenas a tarefa empática de se buscar colocar no lugar de quem sofre, como na aderência da população às medidas de saúde necessárias para a proteção coletiva.

"Um dos fatores para o indivíduo aderir a guias de proteção nesses casos é o tipo de comunicação governamental adotada. Seria eficaz se fosse uníssona e clara nas informações, e seria importante, nesse caso, como fator desencadeador de empatia", destaca, para ressalvar: "Falamos de um exemplo muito importante, porque a maioria o elegeu como seu representante —e falas que demonstram claramente falta de empatia impactam no fator social e cultural de quem o segue", constata.

Empatia mais 'radical' presume olhar também para as desigualdades

Emerich reforça: tem sido ainda mais custosa a prática de uma atitude empática em relação às vítimas do coronavírus quando parte das próprias figuras de autoridade política e da saúde do país, "nas quais se reconhece o lugar de liderança", não agem nesse sentido.

No entendimento de Emerich, a intensidade com que uma pessoa pode se trabalhar mais ou menos empática tem relação também com o foco nas desigualdades - especialmente agora.

Ele cita o exemplo do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), cujas datas de realização foram mantidas pelo governo federal mesmo ante a queixa de secretários de educação e de estudantes prejudicados pela paralisação das aulas, dada a quarentena.
"Viver a intensidade dessa empatia é de fato tocar em algumas outras questões que, sob um olhar de espectro mais amplo e macropolítico, reforçam as dificuldades do acesso ao ensino superior, a quem não pode pagar aulas neste momento, e também a lógica da exclusão", define.

Para o professor, embora algumas ações empáticas despertadas pela pandemia --como ajudar os idosos confinados em prédios, por exemplo -- reforcem esse lado humano que há em nós, ante a falta de controle sobre o desconhecido, elas não são "radicais" o suficiente para ajudar a transformar contextos desiguais.
"Quem está vulnerável e na linha de frente e quem pode se proteger do vírus? E quem não está? Ou seja: por mais que tenhamos alguns pontos comuns ao sermos empáticos, por outro lado, somos atravessados por diferentes afetos contraditórios", afirma.

Empatia se treina

Como, então trabalhar por uma construção empática junto a si e ao outro? Emerich defende que o primeiro passo para tal é reconhecer que a experiência de vida do outro não deve ser adaptada à nossa própria história.

"E isso exige um exercício de escuta em situações que nem sempre serão semelhantes às próprias crenças: é preciso reconhecer que a percepção de vida do sujeito não está formatada", explica. Ou seja: "reconhecer o saber do outro como legítimo é poder entender que não se pode catequizá-lo", completa.

E ele questiona: "Que tipos de laços sociais vamos manter ou não? Para onde estamos querendo ir? Essa pandemia está mostrando isto, também: a dimensão da falta de empatia, a deslegitimidade ou mesmo a negação do direito à vida do outro. Pode ser que, quem sofre com essa falta de empatia, por vezes vai ter como opção simplesmente não conviver com quem não transformar esse olhar", conclui.