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Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Inglesa nunca sentiu dor e explicação pode ser genética; entenda a condição

Joanne Cameron encara a dor como "uma coisa abstrata" - Reprodução/Kamila Lozinska/The New Yorker
Joanne Cameron encara a dor como "uma coisa abstrata" Imagem: Reprodução/Kamila Lozinska/The New Yorker

Bruna Alves

Colaboração para VivaBem

10/01/2020 12h02

Desde crianças estamos acostumados a sentir algum tipo de dor provocada por nós mesmos ou por situações adversas. Seja ela física ou emocional, a dor sempre esteve presente. E podemos confirmar isso facilmente quando caímos de mal jeito, nos queimamos, ou passamos por algum procedimento cirúrgico. A palavra "ai" com certeza é uma das mais utilizadas em qualquer vocabulário mundial.

A ideia da dor também se aplica a transtornos emocionais que fazem parte do nosso cotidiano, como a tristeza, ansiedade, raiva, medo. Não há quem diga que nunca tenha vivido um momento de dor ou frustação, certo? Bem, para a maioria das pessoas, sim, e podemos até mesmo dizer que para praticamente todas as pessoas. Mas como em toda regra há uma exceção, a história encontrou uma —Joanne Cameron, 72.

Natural da Inglaterra, Joanne é professora aposentada e atualmente vive em uma comunidade rural na Escócia, com seu marido e dois filhos. Suas cicatrizes e cabelos brancos espelham uma vida inteira de alegrias e, aparentemente, momentos difíceis também.

Mas com ela as coisas aconteceram diferentes. Muito diferentes. Em entrevista a New Yorker, revista dos Estados Unidos, Joanne conta nunca ter sentido dor alguma, ou sequer passado perto disso. Para ela, a sensação de dor nunca passou de uma coisa abstrata —algo que ela ouviu falar, mas não sentiu na própria pele.

É como se o cérebro dela identificasse de forma automática qualquer tipo de dor e imediatamente buscasse uma maneira de reverter a situação em algo normal, ou até mesmo prazeroso. Ela não percebeu que era diferente até os 65 anos e tal sintoma tem despertado o interesse de importantes pesquisas mundiais.

Durante a entrevista, Joanne descreve uma situação que para muitos seria sinônimo de desespero: há alguns anos ela recebeu uma ligação informando que seu filho mais velho havia sido espancado e estava em um hospital. "Inicialmente, pensei: Oh, Deus, espero que ele não morra. Então nós entramos no carro, mas eu não estava me preocupando, estava apenas pensando: precisamos chegar até ele, ele precisa de mim. Chegamos ao hospital por volta das quatro ou cinco da manhã", lembra, de forma casual.

O jovem conseguiu se recuperar, mas até tudo voltar ao normal, a maioria das mães teria perdido muitas noites de sono. Em nítido contraste, ela simplesmente não conseguia demonstrar nenhum tipo de sentimento ruim. Sua capacidade é extremamente limitada para sentir somente coisas boas, embora o cenário seja perturbador.

"A fuga da dor leva a mais dor. Ela não tem essa capacidade de sentir a dor do outro. E às vezes, o que essa pessoa de fato quer é que você a entenda, e isso traz uma sensação de conexão. Então, nesse sentido, isso o que ela faz prejudica (os outros)", avalia Bárbara Bittencourt, psicóloga clínica formada pela Universidade de Brasília e neuropsicóloga.

Há seis anos, Joanne precisou passar por uma cirurgia para corrigir um problema de artrite. A doença deixou suas mãos deformadas e a impedia até mesmo de segurar uma caneta corretamente. Na operação foi necessário remover um pequeno osso na base da articulação do polegar. No entanto, durante o processo de pós-operatório, ela não tomou nenhum remédio para dor —exceto um paracetamol.

Foi a partir dessa cirurgia que ela foi descoberta pelo médico anestesista e seu caso passou a ser estudado. O médico realizou uma manobra de alta intensidade interna em Joanne, que só era aplicada em pacientes com dificuldades de recobrar a consciência após a operação. A resposta foi imediata, e ele percebeu que ela realmente não sentia dores. Tal efeito em uma pessoa normal só passaria com o uso de fortes sedativos. Ela, porém, foi medicada apenas com tylenol e paracetamol, usados normalmente no dia a dia de qualquer pessoa.

O estudo ainda está no início e o caso dela é único. Por isso, não é possível nomear como uma doença específica. Contudo, já é possível identificar uma explicação científica aproximada do que acomete a idosa. Ela é portadora de uma espécie de "insensibilidade a dor hereditária".

"É considerado um distúrbio de origem genética. São sintomas causados por uma mutação (uma substituição ou uma deleção, por exemplo) em um conjunto de bases nitrogenadas (adenina, guanina, citosima e timina, por exemplo), que fazem parte do nosso genoma, em um local bem específico", explica Pedro Brandão, neurologista do Hospital Sírio-Libanês de Brasília e do departamento médico da Câmara dos Deputados.

"Cada gene, no final das contas produz uma proteína que vai ter uma função no corpo. Nós temos 22 mil genes, e se você troca um grupo dessas letras e deleta uma parte, o produto final do gene fica alterado. E essa alteração do gene pode gerar uma proteína que gera no final um sintoma", completa o especialista. Isso significa que Joanne possui uma mutação genética em um outro local do genoma, na região cromossômica da hidrolase de amidas graxas (FAAH).

Os cientistas que avaliaram a paciente descreveram um alto nível sanguíneo de um canabinóide endógeno, chamado anandamida. Esse nome é derivado da palavra sânscrita "ananda" que significa felicidade. A anandamida é uma amida de ácido graxo (amida graxa), uma gordura que tem atividade neural, e serve para influenciar a atividade de grupos de neurônios, por meio do receptor canabinóide.

A anandamida tem um papel fisiológico importante no corpo: na percepção de dor, na memória relacionada ao medo, na ansiedade e na depressão. Ela é uma molécula que todos nós produzimos, mas em quantidades bem menores do que Joanne.

Sentimentos ruins imperceptíveis

Para a maioria das pessoas é necessário viver um período de luto após a perda de um ente querido. Joanne perdeu sua mãe há um ano e afirma não ter tido nenhum sentimento ruim.

A morte de minha mãe foi a coisa menos triste de todos os tempos.

"Ela costumava dizer: 'Eu tive a vida mais maravilhosa'. E ela morreu depois que tomou um picolé e foi dormir. Esse é o cadáver mais bonito que já vi. Então sentamos na cozinha e tivemos um velório fantástico", recorda.

Embora muitos filhos tenham a sensação de dever cumprido ou de que estava na hora da partida, é bem pouco provável que você conheça alguém que diz ter vivido um velório "fantástico" de uma pessoa tão próxima.

Para o neurologista, o que aconteceu no cérebro de Joanne em relação à morte de sua mãe não foi normal. "Muito provavelmente o que está acontecendo no cérebro dela é uma sinalização inadequada, em que a anandamida deveria estar em níveis baixos, mas fica em níveis aumentados. E isso é totalmente anormal. Chega a ser quase uma percepção prazerosa da dor", comenta o especialista.

Outra situação que deixaria qualquer pessoa triste seria a perda de um marido —ainda mais quando se tem dois filhos, uma menina de um ano e um menino de 13 para criar. Com Joanne, porém, essa parte também foi tranquila.

A princípio, essa superação automática frente a coisas negativas pode parecer benéfica, mas não é. De acordo com a neuropsicóloga Bárbara Bittencourt, cada emoção tem sua responsabilidade e desenvolve um papel importante em nossa mente.

"As emoções têm a função de como nós devemos nos comportar com nós mesmos e com o mundo. A tristeza, por exemplo, traz a nós esse estado mais retrospectivo de consciência e introspectivo, que faz a gente parar para resolver problemas e amplia o nosso estado de autoconsciência. Então ela tem essa função de reflexão e conexão. Pela história de vida dela, muitas pessoas poderiam ter desenvolvido um quadro depressivo", ressalta Bárbara.

Queimar a mão e se queixar da dor? Normal para todas as pessoas. Mas com Joanne não. Ela só conseguia perceber uma queimadura em seu próprio corpo por causa do cheiro da fumaça e da faísca.

Diante de um estado físico e emocional completamente alterado há quem diga que sonha em ser como Joanne e passar pela vida sentindo apenas as coisas boas, mas a dor é um fenômeno natural da natureza e do corpo, e como tal precisa ser sentida em todas as suas esferas.

"A raiva tem uma função muito interessante de colocar limites e você lutar pelos seus direitos. Se eu não sinto dor, eu não tenho reação e não coloco limites para as pessoas, e elas acabam invadindo o meu espaço", comenta a neuropsicóloga Bárbara Bittencourt.

Nesse contexto, podemos dizer, ainda, que a dor está associada a alguma coisa negativa intimamente relacionada ao nosso emocional, mas que possui uma função fisiológica. Para os especialistas, a dor é extremamente necessária para a vida das pessoas. Dentre outras funções, ela tem o papel fundamental de nos avisar quando algo está errado em nosso corpo.

Por exemplo, quando sentimos uma dor de estômago, automaticamente percebemos que alguma coisa está errada e paramos de comer. E se os sintomas persistirem, logo procuramos ajuda médica. Mas e se não sentíssemos nada, como identificaríamos um possível doença? Nesse sentido, a dor traz uma autoproteção comportamental, e torna-se benéfica para a saúde.

Estudos podem ajudar a desenvolver remédios

Em contrapartida, os estudos que estão sendo feitos em Joanne são vistos com bons olhos. Se analisada a fundo, a mutação pode ser eficaz para ajudar outras pessoas que sofrem com fortes dores ou demais patologias associadas a depressões e ansiedades.

"Isso vira cientificamente interessante, porque sabendo disso e identificando as moléculas pode virar um assunto de estudo científico da molécula. Daí você pode passar a tentar fazer com que isso que acontece no cérebro dela, (aconteça) com as outras pessoas que não têm essa desrregulação e tentar produzir isso com remédios. Isso poderia ser um potente analgésico, que além de inibir a sensação de dor, provocaria uma sensação de alegria e bem-estar", pontua o neurologista, Pedro Brandão.

De acordo com os especialistas, ainda não é possível chegar a nenhuma conclusão específica desse caso, já que a paciente em questão está sendo avaliada e passando por diferentes testes e exames laboratoriais. No entanto, é possível avistar em um futuro distante a possibilidade de novos medicamentos que tornem as dores humanas menos agressivas.