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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


A culpa é sempre do outro? Talvez seja hora de assumir sua responsabilidade

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Imagem: iStock

Diego Garcia

Colaboração para o VivaBem

14/11/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Culpar os outros pode estar associado ao medo de ser julgado ou de projetar no outro aquilo que não aceitamos em nós
  • Todos temos limitações e dificuldades e negar isso culpando outras pessoas por nossos erros e atitudes, nos impede de aprender e evoluir
  • Assumir a responsabilidade das ações que fazemos, nos permite corrigir erros, superar limitações e nos colocar como protagonistas de nós mesmos

Culpar o outro por algo de errado que você fez ou que não deu certo pode parecer confortável, mas essa atitude pode ser uma forma de esconder limitações e dificuldades. Algumas pessoas culpam outras pelo que acontece em suas vidas, geralmente acontecimentos negativos, tirando de si a responsabilidade de suas próprias atitudes.

"A culpa é um sentimento aflitivo que diz respeito a nós próprios, isto é, ao nosso interior. Ela surge quando cometemos alguma ação ou mesmo quando pensamos ou desejamos algo que é contrário às normas da sociedade ou da comunidade em que vivemos" Leonardo Cardoso Portela Câmara, psicólogo, psicanalista e professor do departamento de psicologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)

Câmara explica que culpar o outro por alguma falta que consideramos ter sido cometida contra nós próprios é ressentimento. Então, se a culpa é um sentimento que atribuímos às nossas próprias ações, o ressentimento consiste em culparmos outra pessoa por ter nos prejudicado por meio das ações dela. O ressentido vai levar a pessoa a colocar-se na posição de vítima e consiste em um padrão: todos os acontecimentos que consideramos negativos atribuímos, imediatamente, aos outros, sem a mínima reflexão.

"Esse padrão é aprendido durante a infância, a partir de uma educação na qual os pais (ou cuidadores) da criança não buscam responsabilizá-la por algo, como por exemplo, uma nota baixa, apressando-se a brigarem com a escola e professores. Também pode ser imitado a partir da própria maneira como os pais e a família resolvem seus problemas interpessoais. Pode se tornar um traço de caráter difícil de ser modificado na vida adulta", analisa.

Culpabilização e projeção

Existem várias teorias dentro da psicologia que explicam a culpabilidade, ou seja, colocar a culpa no outro. Uma delas é a impossibilidade de a pessoa reconhecer seu papel nos acontecimentos da vida, já que isto implica um enfrentamento psíquico.

"As experiências que temos nos causam, no mínimo, consequências psíquicas como sentimentos e pensamentos. Assim, reconhecer o que se passa consigo mesmo exige do sujeito estratégias de apropriação e de enfrentamento, das quais alguns sujeitos carecem mais que outros", esclarece Carolina de Barros Falcão, psicóloga, psicanalista e professora adjunta da do Curso de Graduação em Psicologia da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).

Ela complementa que existem diferenças entre situações ocasionais e situações sistemáticas nas quais este processo ocorre, o que nos ajuda a pensar acerca da extensão e da intensidade desta carência de recursos psíquicos nas pessoas.

Tiago Ravanello, psicólogo e professor do curso de psicologia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) diz que culpar o outro pode se tratar de reconhecer muito indiretamente naquela pessoa as deficiências e desejos que não queremos em nós mesmos, sem que tenhamos que enfrentar de forma mais trágica esse traço de alienação que nos é próprio. "Em outros casos, deparar-se consigo mesmo torna-se impossível em algum momento, de tal modo que projetar o que somos em alguém e fazê-lo assumir a nossa intencionalidade, mesmo que apenas fantasiosamente, pode ser um passo anterior ao reconhecimento do que nos move".

Segundo Ravanello, algumas pessoas escolhem um determinado grupo ou traço distintivo de algo ou alguém como motivo de ódio ou perseguição, como se ter este "inimigo íntimo" fosse necessário para dar um suporte externo a tudo aquilo que se tornar insuportável em nossa própria experiência.

Casos em que os limites psicológicos entre o eu e outro tornam-se movediços e, por consequência, temos não apenas a culpabilização do outro, mas também sentimentos de invasão e dominação de nossas ações por terceiros, é uma situação mais radical do problema.

Problemas de relacionamento e outras consequências

Câmara esclarece que, em termos de saúde mental, o ressentimento paralisa qualquer possibilidade de mudança: uma vez que é o outro que tem culpa pelo meu sofrimento, nada devo fazer para resolvê-lo senão esperar que esse outro contra o qual acuso resolva minha situação. "O filósofo alemão Friederich Nietzsche dizia que o ressentimento é um veneno, querendo dizer com isso que é algo que adoece e enfraquece as pessoas. No lugar de tornar-se agente de sua própria vida, isto é, de ser ativo e de agir para mudar seu destino, o indivíduo encontra-se em estado de passividade e imobilidade".

Para o psicanalista, as consequências dessa postura não se restringem apenas ao campo mental, mas também ao físico. Não é raro, por exemplo, observar sujeitos culpam os profissionais de saúde pelo insucesso do tratamento de uma doença quando, em um olhar mais atento, não seguiram as prescrições.

"Neste processo de colocar para fora o que produz dor ou sofrimento, o sujeito instala-se numa posição passiva e, com isso, muitas vezes fica preso numa posição queixosa e acusatória, pois vê a si mesmo como aquele que 'paga inocentemente' por algo que ocorre", analisa Falcão. Ela complementa que a tensão nas relações humanas produz mal-estar, que, quando não trabalhado psiquicamente, produz diferentes sintomas psíquicos.

Ravanello afirma que uma das formas mais interessantes de se pensar a psicopatologia e o sofrimento mental é entender esses fenômenos como um modo de construção de relações sociais, como uma forma de estrutura de nossos contatos com o mundo e com os outros. Se um traço que se repete em nossas ações leva à culpabilização do outro por nossos fracassos e frustrações, não estaríamos também construindo para o outro um lugar de perigo e opressão? E como poderíamos estar razoavelmente tranquilos ou confortáveis se sentirmos que, a qualquer momento, as pessoas que nos cercam podem nos causar danos irreparáveis?

"Em função disso, se é verdade que a culpabilização excessiva pode levar um sujeito à solidão e ao isolamento, também é correto afirmar que, mesmo sozinho, sua posição tende a ser defensiva e ansiosa em relação às pessoas que fazem parte ou se apresentam ao seu convívio", complementa.

Assumir responsabilidade possibilita o crescimento pessoal

Para Câmara, tornar-se responsável pela própria vida, não dependendo inteiramente do outro para seu sucesso ou fracasso, é ser capaz de responder aos desafios da vida em uma posição ativa e afirmativa. Em vez de esperar que as coisas aconteçam de determinada forma e encontrar alguém para culpar por essas coisas não acontecerem, a pessoa que se responsabiliza pela sua vida busca contornar as dificuldades.

Talvez esse seja o ponto essencial do processo de se responsabilizar: escolher e criar uma vida que valha a pena ser vivida. "Uma vida que, se fôssemos condenados a revivê-la por toda a eternidade, ficaríamos contentes em poder revivê-la quantas vezes se repetisse. É esse o exercício do eterno retorno que Nietzsche nos propõe, e é esse exercício que coloco como dica para questionar o seu ressentimento", completa Câmara.

Nem sempre é fácil mudar, ainda mais quando se é confrontado consigo mesmo. Nestes casos, a ajuda da terapia é fundamental, além do processo de autoanálise. "Ambos nos levam a um enfrentamento trágico em relação a nós mesmos. Despir nossas roupagens imaginárias, ceder de nossas imposições de sucesso, felicidade e adequação ao desejo dos outros, tudo isso pode nos levar a um (re)encontro necessário com o impossível que nos habita", orienta Ravanello.

Em casos em que não é possível o acompanhamento profissional, a sugestão de Ravanello é a de escutar com o máximo de abertura possível o que se repete naquilo que lhe é dito. Se muitas pessoas questionarem a mesma coisa ou se aquela pessoa de confiança lhe fizerem a mesma cobrança, vale a pena "baixar a guarda", poupar as justificativas e convidar a si mesmo para uma reflexão mais demorada. "Nem sempre precisamos manter a razão: por vezes é mais benéfico perdê-la, deixar-se transformar e, quem sabe, a reencontrar em outro momento", finaliza.

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