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A síndrome rara que 'roubou' a fala da minha irmã

Victoria Scott/BBC News
Imagem: Victoria Scott/BBC News

Victoria Scott - Especial para a BBC

15/09/2021 18h47

A britânica Victoria Scott conta a histórica da irmã Clare, com quem se comunica sem palavras há quatro décadas.

Os irmãos, em geral, desfrutam de um vínculo forte por terem crescido juntos e compartilhado as mesmas experiências. É o caso da escritora Victoria Scott e sua irmã Clare.

No entanto, Clare não consegue falar, escrever ou fazer sinais porque sofre da síndrome de Rett —e, como resultado, as duas se comunicam sem palavras há mais de quatro décadas.

Estamos por volta do ano de 1989, e meus colegas fazem bullying comigo na escola. Não quero falar com meus pais porque estou com vergonha, mas sei que Clare não vai me julgar.

Depois de apagar as luzes, vou para a cama dela. Deitamos nariz com nariz, e ela escuta enquanto eu desabafo todas as minhas preocupações —quando termino, sua respiração rítmica e superficial, me faz adormecer.

Passamos muitas noites assim durante a infância. Eram completamente unilaterais, porque Clare não conseguia falar.

Ela tem síndrome de Rett, um distúrbio neurológico complexo.

Quando nasceu, não havia nenhum sinal que indicasse sua condição, mas um gene defeituoso roubou as habilidades que ela havia desenvolvido quando era pequena —e agora precisa de cuidados 24 horas por dia.

O que é a síndrome de Rett?

- É um distúrbio neurológico genético raro que afeta o desenvolvimento do cérebro e leva a deficiências físicas e mentais graves;

- Afeta principalmente meninas;

- Está presente desde o momento da concepção, mas costuma ser detectada apenas quando a criança começa a regredir, por volta do primeiro ano de vida;

- Embora atualmente não haja cura, tratamentos potenciais estão sendo estudados.

Fontes: Mayo Clinic, NHS

Diagnosticada na década de 1980, Clare foi uma das primeiras meninas no Reino Unido a receber esse diagnóstico dos médicos, que não tinham muita experiência em tratar seu caso.

Isso significa que meus pais receberam duas informações vagas e assustadoras.

A síndrome rara que 'roubou' a fala da minha irmã - Victoria Scott/BBC News - Victoria Scott/BBC News
Imagem: Victoria Scott/BBC News

Primeiro, disseram a eles para levar Clare para casa e "mantê-la feliz", dando a entender que ela certamente morreria em breve.

Graças a Deus que a profecia não se cumpriu. Clare tem hoje 41 anos e mora em um aconchegante bangalô residencial administrado por uma instituição beneficente.

Nossa mãe, Yvonne, abriu mão da carreira para cuidar dela, mas conforme Clare crescia e suas necessidades se tornavam mais complexas, nem sequer isso era suficiente.

A outra coisa que disseram aos meus pais foi que Clare provavelmente teria sempre o nível de compreensão de um bebê.

Sempre duvidei dessa suposição.

Os olhos de Clare são sábios, calorosos e expressivos. Eles se iluminam quando ela ouve sua música favorita, Kylie, e se emocionam quando ela escuta The Snowman.

Seus olhos dançam quando ela vê sua sobrinha e sobrinho e brilham quando ela vê um homem de quem gosta (incluindo meu marido, que eu não me importo de compartilhar).

Também ficam mais aguçados quando ela está com dor, apertados quando ela está com medo e sem brilho quando ela está cansada.

Tem ainda suas mãos, que devido à síndrome de Rett se retorcem diariamente desde a infância.

São indicadores de seu humor: ficam frenéticas quando ela está animada, lânguidas quando está relaxada, rígidas quando está desconfortável.

Apesar de sua incapacidade de se comunicar por meio da palavra falada ou escrita, esses movimentos involuntários nos dizem muito.

Nos últimos anos, o desenvolvimento da tecnologia do olhar, em que uma pessoa pode construir palavras e frases se concentrando na tela do computador, transformou a vida de muitos pacientes com Rett, proporcionando acesso a um mundo interior que outrora se pensava estar perdido para sempre.

As famílias descobriram que seus filhos são capazes de compreender mais do que os médicos supunham inicialmente, causando uma mudança profunda para todos os envolvidos.

Um pai cuja filha tem síndrome de Rett me contou que suas primeiras palavras por meio do olhar foram: "Te amo".

Infelizmente, Clare não domina a tecnologia, sobretudo porque suas necessidades de cuidado médico têm sido enormes nos últimos anos.

Ela foi hospitalizada com pneumonia e sepse em 2019 —e a pandemia de covid-19 fez com que ela fosse isolada à força do mundo exterior para se manter protegida.

Mas não perdemos a esperança, porque a esperança é o motor que continua a nos impulsionar a seguir adiante.

Há algo mais que nos motiva. Quase quatro décadas após o diagnóstico de Clare, agora sabemos qual gene causa a síndrome de Rett —o MECP2—, e a expectativa é de que cientistas americanos lancem no próximo ano o primeiro teste de terapia genética em humanos para tratar a condição.

O teste prevê injetar um vírus modificado no receptor que carrega uma versão correta do gene defeituoso.

Os testes desta terapia em ratos mostraram que pode ser possível uma reversão completa da síndrome de Rett.

É uma perspectiva extraordinária, absolutamente desconcertante, que a condição de Clare possa ser potencialmente revertida na idade adulta.

Parece ficção científica, embora logo possa se tornar um fato científico.

Mas tenho algumas preocupações importantes. Me preocupo em como Clare se sentiria a respeito e se ela ficaria com medo. Além disso, a terapia genética é nova e arriscada. E se der errado?

Também discutimos a possibilidade da terapia genética em família, mas ainda não chegamos a nenhuma conclusão.

Tomar uma decisão tão importante como esta em nome da minha irmã, sem poder consultá-la, é uma grande responsabilidade.

Embora as pesquisas apontem para ganhos potencialmente incríveis, a terapia genética também envolve alguns riscos significativos, incluindo a possibilidade de desenvolver câncer ou um problema no sistema imunológico —e até mesmo o risco de morte.

Que direito temos de tomar essa decisão por ela? E, por outro lado, temos o direito de negar a ela esta oportunidade?

Foram estas perguntas que me inspiraram a escrever meu primeiro romance, Patience, que fala sobre como uma família lida com a decisão de inscrever sua filha em um ensaio experimental de terapia genética.

Eu queria explorar a questão ética e as emoções em torno de tal decisão.

O romance é contado a partir da perspectiva da mãe, do pai e da irmã de Patience e, mais importante, da própria Patience.

Ela não consegue se comunicar e sua família não sabe que ela entende.

A própria Clare teve uma vida em que outras pessoas tomaram decisões sobre sua vida e sua saúde sem que ninguém a consultasse, e eu queria compartilhar essa experiência.

Voltemos mais uma vez àquelas noites da infância. Naqueles momentos, quando éramos só nós duas, juro que senti que havia telepatia.

Com nossos rostos colados, eu sentia as palavras desaguando dentro de mim, quentes e sábias.

Você poderia dizer que foi a realização de um desejo, que eu estava projetando minhas próprias palavras sobre ela, e essa é a explicação mais provável.

Mas também acredito no poder do amor humano de cruzar barreiras, de influenciar coisas além dos domínios da compreensão científica.

Talvez Clare esteja "falando" comigo, talvez não, mas algumas evidências são irrefutáveis. Sei por seus sorrisos e risadas que ela sabe quem eu sou, que se lembra do nosso vínculo e que gosta da minha companhia.

Recentemente, vi Clare pessoalmente pela primeira vez em 18 meses, o tempo mais longo que estivemos separadas.

Depois que enxuguei minhas lágrimas, peguei sua mão e dei um abraço nela —e ambas asseguramos uma à outra que ainda estávamos vivas e respirando.

Mostrei a ela depois um exemplar do romance que ela sabia que eu estava escrevendo, mas provavelmente, como quase todo mundo (inclusive eu), nunca acreditou que o veria impresso.

Trocamos um olhar significativo e um sorriso, e isso significou muito para mim.