A medicina em outra dimensão

A impressão 3D permite produzir modelos de órgãos, próteses e instrumentos cirúrgicos que ajudam a saúde

Marcia Di Domenico Colaboração para o UOL VivaBem
Marcel Lisboa/VivaBem

A tecnologia de impressão 3D não é exatamente uma novidade. Foi desenvolvida em meados dos anos 1980 e, de lá para cá, possibilitou avanços enormes em áreas como engenharia, arquitetura, design e indústria de vários segmentos. Primeiro, com a fabricação de peças pequenas e protótipos simples; até permitir a criação de réplicas de automóveis e casas.

Na medicina, a impressão de próteses, instrumentos cirúrgicos e modelos de órgãos em três dimensões é uma realidade há alguns anos, mas que viveu um boom a partir de 2015 no mundo inteiro. Em 2016, a Forbes colocou a tecnologia entre as mais promissoras para revolucionar os cuidados de saúde no mundo, e você vai conhecer aqui como ela já faz ou irá fazer isso. 

Tecnologia para ser usada desde a barriga da mãe até a velhice

Hoje, o céu é o limite e muita coisa vem sendo produzida nos laboratórios médicos brasileiros e estrangeiros com impressão 3D. É possível encontrarmos desde amostras de pele até réplicas perfeitas de fetos, criadas para planejar cirurgias complexas ainda dentro do útero --ou aplacar a ansiedade de pais que querem saber logo como é a criança antes de ela nascer. Sim, dá para imprimir em diversos tamanhos um boneco igualzinho ao filho que ainda está na barriga da mãe, e alguns até fazem pingentes com ele. 

E não vai demorar muito para a impressão 3D afetar dramaticamente nossa longevidade, prolongando em muito a expectativa de vida. "Em dez ou 15 anos deve ser possível fabricar órgãos humanos com material desenvolvido a partir de células biológicas e que funcionam como os originais", avalia Maria Elizete Kunkel, professora do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Kunkel coordena o projeto Mão3D, que fabrica e doa próteses customizadas de membros superiores impressas em três dimensões para crianças e adultos que nasceram sem ou perderam mão e braço em acidente. A ortopedia é uma das especialidades que mais se beneficia com essa tecnologia. No caso das crianças que precisam de próteses, ter acesso a um modelo totalmente customizado faz a diferença para que possam se desenvolver normalmente. Isso porque muitas vezes os modelos tradicionais, aprovadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em tamanhos padrão, não se ajustam ou duram pouco tempo devido ao crescimento rápido na infância.

Como funciona a impressão 3D

De modo geral, o processo de manufatura aditiva --nome técnico da impressão 3D -- para uso na área médica é o seguinte: após o escaneamento de uma imagem bidimensional --uma tomografia ou ressonância magnética, por exemplo -- do órgão ou estrutura a ser reproduzida, usa-se softwares específicos para criar um arquivo digital contendo um modelo virtual dela em três dimensões.

O arquivo é então enviado à impressora, que deposita camada sobre camada do material escolhido --geralmente resina plástica de diferentes texturas e densidades ou titânio, dependendo da aplicação --, e em minutos ou até segundos a peça fica pronta. O princípio é semelhante ao das impressoras de jato de tinta domésticas. Só que nesse caso o produto final é um objeto sólido na forma solicitada.

Aplicações possíveis

Atualmente o mercado e as pesquisas sobre impressão 3D se movimentam em torno de três pilares

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Próteses e implantes

São peças criadas para substituir partes do corpo com má formação ou que sofreram amputação ou dano, como braços, pernas, orelha, nariz e até partes do crânio e do rosto. A vantagem principal é a personalização e, com isso, o ajuste perfeito no paciente.

No Japão e nos Estados Unidos, por exemplo, os planos de saúde não só incentivam como bancam a opção por próteses e implantes com tecnologia 3D nas cirurgias, e alguns hospitais possuem centros próprios de impressão. Em nosso país, as seguradoras até cobrem e alguns hospitais realizam esse tipo de procedimento. Mas os casos vêm sendo estudados individualmente e dependem de liberação, pois não há legislação acerca de próteses impressas em 3D e a Anvisa autoriza apenas a fabricação de peças ortopédicas padrão.

Biomodelos

São réplicas sintéticas de órgãos e estruturas (cérebro, coração, ossos, artérias) para serem usados no planejamento de cirurgias complexas. Na cardiologia, por exemplo, uma das especialidades que mais utiliza modelos anatômicos para simular procedimentos, é comum que imagens bidimensionais não mostrem detalhes do coração fundamentais para o sucesso da operação.

Ter em mãos um órgão artificial idêntico ao do paciente permite prever situações e definir técnicas, local e tamanho de incisões, assim como a necessidade de guias e instrumentos com antecedência. Tudo isso ajuda no diagnóstico e tratamento da doença, economiza tempo e recursos e proporciona mais precisão e segurança no procedimento, já que a pessoa fica menos exposta à anestesia e infecção.

Medicamentos

A fabricação de remédios personalizados é uma das aplicações mais promissoras da impressão 3D. De acordo com um estudo publicado no International Journal of Pharmaceuticals, seria possível imprimir comprimidos contendo diversos ingredientes ativos, nas dosagens exatas e em camadas que liberariam as drogas em tempos diferentes no organismo. Isso melhoraria a qualidade de vida e a aderência ao tratamento de pacientes de doenças crônicas, por exemplo, que tomam vários remédios diariamente.

A impressão também permitiria a manipulação de comprimidos em dosagens diferentes das encontradas no mercado, o que permitiria ao médico prescrever receitas customizadas de acordo com idade, gênero e outras características capazes de influenciar a tolerância ao medicamento.

A impressão 3D na vida das pessoas

Crânio

Especialistas desenvolveram no laboratório de biofabricação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) um implante craniano de titânio que já foi testado por mais de uma dezena de pacientes com deformações por causa de acidente, alterações ósseas ou retirada de tumor. A prótese é construída de acordo com o grau de perda óssea, na espessura e geometria exatas para encaixe perfeito e melhor integração entre os tecidos que voltam a crescer sobre o implante (pele, nervos, músculos).

Cérebro

Antes de submeter pacientes a cirurgias, imprimir uma réplica 3D do cérebro permite ver em detalhes a anatomia do órgão e localizar tumores, coágulos e lesões de origem degenerativa. Um trabalho publicado no Journal of Neuroimaging mostrou como a impressão 3D pode ajudar a diferenciar danos característicos de esclerose múltipla de outros tipos de lesões cerebrais a partir do formato tridimensional e morfologia das alterações, traços impossíveis de detectar em imagens bidimensionais.

Face

Uma equipe de cientistas da University College London, no Reino Unido, produziu um implante facial impresso em titânio para um paciente que perdeu parte do rosto após a retirada de um tumor. A partir da imagem digitalizada da face da pessoa, os médicos foram capazes de recriar completamente o formato do rosto do paciente e imprimiram a prótese em 3D. A peça permite, inclusive, a movimentação normal da mandíbula. Também foi impresso um tecido de silicone imitando a pele para recobrir o implante.

Boca

A odontologia é beneficiada há tempos com a impressão 3D. A aplicação mais básica é a moldagem da arcada dentária para a confecção de próteses de coroa, placas de bruxismo e facetas de porcelana a partir do uso de um scanner intraoral. O moldes 3D substituem os tradicionais, em gesso, e têm as seguintes vantagens: maior precisão e resistência, agilidade na produção (um modelo em 3D fica pronto em 48 horas, contra uma semana do gesso) e possibilidade de refação sem impactar os custos, além de mais conforto ao paciente.

Cartilagem

Utilizando células da cartilagem da orelha de um coelho misturadas com material sintético, cientistas do Instituto Wake Forest de Medicina Regenerativa, na Carolina do Norte, Estados Unidos, produziram tecido artificial impresso em 3D que foi então implantado em ratos. Depois de oito semanas, a estrutura apresentou aspecto e resistência semelhantes às de cartilagem humana. De acordo com os pesquisadores, a descoberta pode ser útil na reabilitação de atletas que sofreram lesão ou desgaste de estruturas cartilaginosas.

Coração

Treinar com um modelo perfeito do órgão pode ser determinante para o sucesso de procedimentos para corrigir anomalias estruturais no coração. Em 2016, foi realizada a primeira operação cardíaca planejada usando um biomodelo em 3D na China. Um bebê de nove meses com má-formação congênita grave no coração foi salvo com a ajuda de um protótipo sintético impresso tridimensionalmente. Os médicos reproduziram todas as estruturas do órgão e localizar com precisão o problema, assim como definir a melhor forma de repará-lo.

Vão imprimir órgãos customizados com células vivas

O futuro da impressão 3D na medicina é a bioimpressão, ou seja, a produção de órgãos a partir de células biológicas (em vez de material sintético). Eles funcionariam em nosso organismo e poderiam ser utilizados em transplantes, acabando com as longas filas de espera. Também substituiriam cobaias animais e humanas em ensaios clínicos e em testes da indústria farmacêutica e cosmética.

Apesar de ainda faltar bastante para a bioimpressão virar uma realidade a ser aplicada no corpo humano, várias pesquisas vêm sendo feitas no Brasil e no exterior e há muitas descobertas e resultados positivos. 

Cientistas da Newcastle University, no Reino Unido, conseguiram reproduzir pela primeira vez uma das seis camadas de córneas humanas a partir de células-tronco de um doador. O procedimento foi concluído em uma impressora simples e levou dez minutos. O avanço representaria uma esperança para aproximadamente 15 milhões de pessoas que necessitam de transplante de córnea no mundo.

No ano passado, cientistas da Universidade Carlos 3º de Madri, na Espanha, apresentaram um implante de pele semelhante ao natural, com todas as camadas que compõem o órgão. Antes disso, pesquisadores da Northwestern  University, nos Estados Unidos, já tiveram sucesso na criação de um suporte celular (scaffold) com biomaterial. Ele foi semeado e implantando em uma membrana vazia de ovários de ratos, que puderam gerar filhotes.

Portanto, num futuro talvez não tão distante, a tecnologia 3D que hoje é usada para fazer pingentes de fetos que --e para procedimentos muito mais importantes, claro -- vai de alguma forma contribuir para o nascimento de bebês de verdade. É aguardar para ver. Ou melhor, para imprimir.

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