Quando o leite não vem

Fatores psicológicos ou físicos podem dificultar a amamentação. O que fazer nessa hora?

Cíntia Marcucci e Fernanda Carpegiani Colaboração para o VivaBem
Brunna Mancuso/VivaBem

Não há dúvidas de que o aleitamento materno é a melhor escolha para a família. Mas a prática, porém, é outra. Algumas mulheres têm muita dificuldade de levar a amamentação adiante e sofrem com a pressão, frustração e incompreensão que vem da família, da sociedade e de si mesmas.

Então, o que fazer quando o leite simplesmente não vem, a fórmula é condenada e causa culpa na mãe?

Só não amamenta quem não quer?

A frase comum e cruel faz muitas mulheres se sentirem culpadas

Lívia acreditava nisso até ter a primeira filha, Cecília, hoje com 5 anos. A amamentação foi muito difícil e, aos trancos e barrancos, durou 6 meses --muito menos do que os 2 anos desejados pela mãe. Quando teve o segundo filho, João, o desafio foi ainda maior.

Com a Cecília, quebrei o mito de que amamentar é fácil e natural, mas ainda achava que só não conseguia quem não tinha tentado de tudo. Aí veio o João e fui muito além do que podia suportar de dor e me questionei: qual é o limite de cada pessoa? É isso que precisa ser respeitado e eu sinto que não é.”

Entre idas e vindas, João mamou no peito até os dois meses. Ele nasceu com o frênulo curto, popularmente chamado de língua presa, e até o diagnóstico, sete dias depois, fazia a pega do bico do seio errado. O resultado foi uma série de lesões que machucaram muito a mãe, a atriz Lívia Gaudêncio, 36 anos, que vive em São Paulo.

E não foi por falta de informação e apoio profissional. Diferentemente da primeira gestação, que aconteceu sem muita orientação e acabou em uma cesariana, o segundo filho veio com o suporte de uma equipe humanizada. Lívia pariu em casa, sem intervenção, e conta que a dor sentida no parto nem se compara ao que sofreu tentando amamentar.

Tive candidíase mamária (infecção por fungos que causa ardor), fenômeno de Raynaut (síndrome rara que causa dor, bolhas e fissuras na mama) e duas mastites. Passei por uma maratona de consultas: fonoaudióloga, pediatra, dentista, fisioterapeuta, e cinco consultoras de aleitamento diferentes. Lutei muito pra conseguir amamentar meu filho. Mas fico constrangida quando dou mamadeira para ele, porque as pessoas julgam sem saber tudo o que passei.

Lívia Gaudêncio

Problemas impedem a amamentação

Disponibilidade física e questões emocionais influenciam

Um dos impedimentos absolutos para o aleitamento é a mãe ser portadora dos vírus HIV ou HTLV (Vírus linfotrópico da célula humana, causador de doenças neurológicas degenerativas e hematológicas). Também não é possível amamentar bebês com galactosemia, uma doença genética rara sem cura que afeta uma em cada 60 mil pessoas e é detectada no teste do pezinho. Nestes casos, a criança não digere a galactose, o açúcar do leite, o que inviabiliza a alimentação natural.

Existem ainda contraindicações temporárias, como herpes e candidíase nas mamas ou uso de alguns medicamentos. Em geral, os médicos recomendam a interrupção das mamadas durante o tratamento, mas a mulher pode continuar ordenhando o peito para não parar de produzir leite.

Já outras situações podem gerar a hipogalactia, que é a produção insuficiente de leite para o desenvolvimento do bebê. Uma das causas são cirurgias de mama feitas sem o cuidado necessário para preservar o sistema de produção e distribuição do leite. O procedimento de reduzir ou colocar próteses de silicone pode prejudicar as glândulas mamárias e obstruir os ductos que levam o leite até a aréola.

Além disso, alguns problemas do bebê, como língua presa ou questões motoras, também podem dificultar a amamentação e pedem ajuda de profissionais especializados. Esse foi o caso da Lívia, contado no início da reportagem.

Amamentar envolve a família toda

Não se pode colocar na mãe toda a responsabilidade

“A mulher não amamenta sozinha, ou não deveria. Ela precisa de apoio, tanto da família quanto da sociedade. A gestação, o parto e a amamentação são trabalhos da mulher para a sociedade, que deveria reconhecer isso e dar assistência para as mães”, diz médico o especialista em amamentação Marcus Renato de Carvalho.

Ele explica que a amamentação é psicossomática, ou seja, também depende de fatores emocionais e psicológicos. A dor ou o desconforto durante o aleitamento, a idealização da amamentação, a expectativa e cobrança por fazer tudo certo, o baby blues (tristeza após o parto) e a depressão pós-parto contribuem para que a mulher tenha dificuldades tanto na produção de leite quanto na amamentação em si.

Luciane Amorim, enfermeira obstetra, e parteira, conta que certa vez atendeu uma mãe com problemas para amamentar, mas tudo estava certo: a pega, a posição, a produção do leite.

“Fiz várias visitas e nada funcionava. Um dia fui lá e o marido não estava. Então, ela disse: ‘Sabe o que é? Eu não gosto que o bebê fique no meu peito, não deixo nem o meu marido tocar meu seio durante o sexo.’ Fui ouvindo, perguntando, até ela revelar que tinha sido violentada na infância. Nossa história fica implícita na nossa maternidade. Quem sou eu pra julgar essa mulher que não queria amamentar?”

Além de falar que é fundamental amamentar, é preciso falar das dificuldades, dizer que é possível superá-las e mostrar como” Luciane Amorim, enfermeira obstetra, e parteira

A mesma sociedade que reforça e cobra a maternidade perfeita, ignorando o contexto e a realidade particular de cada mãe, também não oferece nenhum suporte para que isso aconteça. Os pais têm apenas cinco dias de licença, vinte quando a empresa faz parte do programa Empresa Cidadã. Assim, eles não têm o tempo nem de se conectar com o bebê, muito menos de dividir as tarefas com a mulher.

Ela, por sua vez, se tiver um emprego com carteira assinada tem direito a quatro meses de licença, seis se for empregada de uma Empresa Cidadã, e dificilmente recebe suporte para prosseguir no aleitamento depois disso. Poucas empresas oferecem espaços adequados para a ordenha do leite e não há creches internas ou próximas para todas.

Além de biologicamente determinada, a amamentação é socioculturalmente condicionada. Dentre todos os mamíferos, o homem é o único em que os condicionantes sociais superam os biológicos, tornando o aleitamento algo facultativo, por estar entrelaçado com as leis de mercado (profissional e de consumo). No meio de tudo isso, tem uma mulher que é a todo momento é empurrada de um lado (tem que amamentar) para outro (precisa voltar a trabalhar, cuidar do corpo)

João Aprígio Guerra de Almeida, coordenador da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

"Amamentação não pode ser uma gestação forçada"

Consultora de aleitamento diz que pressão só atrapalha

A consultora de aleitamento Ana Paula Garbulho, que é obstetriz e educadora perinatal, lembra uma vez que recebeu o telefonema de um pai preocupado com a amamentação do filho.

“Achei superlegal a atitude dele, mas quando cheguei encontrei uma mulher muito brava. Disse que estava sofrendo pressão do marido e que não queria amamentar. Então eu falei: ‘Peço desculpas por ter vindo contra a sua vontade, eu não sabia. Você não tem obrigação nenhuma de amamentar. Essa decisão é só sua’."

Outro caso que Ana acompanhou foi o de uma mãe com um histórico de mulheres que não amamentaram na família. O bebê demorou 4 dias para pegar o peito, o que ainda é considerado normal – a descida do leite pode levar de 3 a 5 dias.

“Ela estava muito insegura, porque achava que também não ia ter leite. Mas a mama dela estava ótima, assim como a sucção da filha. Fiquei mais de uma hora com ela tentando fazer dar certo e nada. Então coloquei as duas no banho e sugeri que elas deitassem juntas sem roupa, para ter um contato pele a pele. Fui embora frustrada. Um tempo depois ela me ligou e disse que a filha tinha mamado! Elas só precisavam de um momento sozinhas, tranquilas, sem tanta pressão.”

Saúde do bebê é o mais importante

Amamentação deve ser revista quando impacta na saúde do bebê

Se a saúde da criança estiver em risco, existe a possibilidade de a mãe abandonar a amamentação e partir para a alimentação artificial de uma vez, se não for bem orientada.

Por isso existe tanta gente que condena o uso da fórmula. Quando bem indicada, ela existe para ajudar quem não pode amamentar ou não pode garantir a nutrição adequada do bebê só com o leite materno. A alimentação artificial pode ser usada como complemento, só não deve ser a primeira e única opção para superar os obstáculos.

“Eu amamentei com sucesso na chamada golden hour, a primeira hora após o parto. Quando minha filha tinha cerca de vinte dias, ela desatou a chorar sem parar. Foram 45 dias dela só chorando e eu buscando ajuda, consultei três pediatras, descartamos infecções e outras doenças. Chegou um momento em que ela tinha perdido dois quilos. Foi quando passei a dar a fórmula e no mesmo dia ela parou de chorar. Era fome”, conta a comerciante Poliana Justo Schemmer, 28 anos, de São Miguel do Iguaçu, no Paraná.

Só eu sei o buraco que ficou dentro de mim quando descobri que minha filha chorava de fome”

Relactação é opção antes de desistir

Bebê toma fórmula por sonda enquanto mama no peito

Quando a dificuldade de amamentar é muito grande, um método interessante para não desistir de dar o peito é a relactação. O bebê recebe, ao mesmo tempo, leite que suga do peito da mãe e a fórmula por meio de uma sonda. Isso faz com que, mesmo tomando leite artificial, a mãe continue produzindo o alimento, já que o seio segue sendo estimulado. E pode até ocorrer de abrir mão da fórmula tempos depois.

Foi o que aconteceu com a psicóloga paulistana Tatiana Anéas, 37, na primeira gravidez. “Tinha problemas na coluna e, por isso, fiz redução de mamas aos 17 anos. Na época, o médico não falou nada sobre influenciar a produção de leite. Quando tive o Pedro, aos 30, e ele estava perdendo peso com um mês de vida, passei um sufoco. Um dos médicos chegou a dizer que eu não tinha leite por questões mal resolvidas com o meu corpo, o que não ajudou em nada, só piorou a minha ansiedade e estado emocional.”

Tatiana trocou de pediatra, fez a relactação e usou fórmula combinada ao leite materno até Pedro completar seis meses. Depois, seguiu com amamentação só no peito, combinada com outros alimentos, até ele ter um ano.

Brasil tem maior banco de leite humano do mundo

Opção é pegar leite de banco, mas nunca fazer aleitamento cruzado

Outra alternativa é recorrer aos bancos de leite humano. O Brasil possui a maior rede do mundo, coordenada pela Fiocruz, e embora a prioridade seja para bebês prematuros e que não podem ser amamentados (casos de mãe com HIV ou outras doenças impeditivas ou órfãos de mãe), qualquer mulher pode se cadastrar para receber --e doar.

O que não pode é mamar diretamente no peito de outra mulher. Recentemente, a TV Globo levou um enorme puxão de orelha do Ministério da Saúde e dos defensores do aleitamento por mostrar no horário nobre, em plena novela das 21h (“O Outro Lado do Paraíso”), um médico recomendar a amamentação cruzada. Houve fala de mea culpa do médico em outra cena, mas a mensagem errada já estava passada.

A amamentação cruzada é contra-indicada porque deixa a criança vulnerável a bactérias e infecções. É um veículo de transmissão desnecessário" Consultora de aleitamento Luciane Amorim

Leite de vaca nem pensar

As fórmulas artificiais são a melhor alternativa quando o leite não vem

Embora não devam estar entre as primeiras alternativas nem de mães e muito menos de médicos para solucionar problemas de aleitamento, as fórmulas artificiais são a melhor alternativa quando o leite não vem. Ou quando ele sozinho não está sendo suficiente para o bebê.

“O leite de vaca ou outros animais é feito para suprir a necessidade dos filhotes deles, é mais forte e não é digerido pelo corpo do bebê que ainda é imaturo. Para se ter uma ideia, um bezerro duplica o peso que tinha ao nascer em 45 dias. Já um bebê humano demora seis meses para atingir essa marca”, explica a nutricionista Claudia Choma Bettega de Almeida, professora da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora de aleitamento materno.

Nenhum leite artificial consegue sintetizar algumas particularidades do leite materno que são importantes para o desenvolvimento infantil. O leite humano não é sempre igual. Primeiro a mãe produz o colostro, que é mais leve para se adequar a capacidade digestiva e à fragilidade do sistema imunológico do recém-nascido, é leve e rico em imunoglobulina A.

Depois tem o leite de transição até chegar ao leite maduro, que pode variar de cor e sabor conforme a alimentação da mulher. “Isso ajuda a começar a formação do paladar”. Também muda durante as mamadas: o primeiro leite que sai da mama, chamado leite anterior, serve para hidratar a criança, tem mais eletrólitos, é rico em proteínas, minerais, água e lactose. Depois é que desce, da mesma mama, o leite posterior, mais gorduroso e calórico, que proporciona o ganho de peso.

As fórmulas infantis, embora sejam feitas usando como base o leite de vaca, são balanceadas para terem o mesmo valor calórico e teor similar de nutrientes que o leite humano. O mesmo vale para as feitas à base de soja, para os bebês com alergias ou intolerâncias. Ou seja, quando administradas de forma correta (em quantidades e adequadas à idade), suprem as necessidades energéticas do bebê.

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