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Vamos Falar Sobre o Luto?

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Existe beleza no luto? Uma reflexão sobre nossas rachaduras existenciais

Técnica centenária do Japão que repara peças de cerâmica quebradas se transformou em uma filosofia de vida - Unsplash
Técnica centenária do Japão que repara peças de cerâmica quebradas se transformou em uma filosofia de vida Imagem: Unsplash

Colunista do UOL

04/08/2022 04h00Atualizada em 04/08/2022 18h59

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Aquilo que causa a noite dentro de nós também pode deixar estrelas. Victor Hugo

Existe beleza colateral no luto? Pode haver algo que transcende a tristeza na ausência definitiva de alguém que amamos? A pergunta pode soar mal aos ouvidos de quem está na fase aguda do sofrimento pela perda. Mas o fato é que é através da rachadura que há em todas as coisas que a luz entra, como disse o poeta e músico Leonard Cohen. Como na arte japonesa do kintsugi, que trata de restaurar a cerâmica partida com ouro ou prata, é possível transformar as cicatrizes em algo maior do que a perfeição anterior.

A coluna de hoje é um convite à reflexão sobre as nossas rachaduras existenciais (e a luz que se infiltra por elas) através de citações de autores que tenho lido e seguido desde o início do meu processo de luto. Com diferentes tons: poéticos, intensos e trágicos, outros leves e bem-humorados, me ajudaram e ajudam a deixar a luz entrar sem fugir da dor. Nem do belo.

Cada citação a seguir é também a recomendação de leitura da íntegra dos livros maravilhosos dos quais foram extraídas.

Quando me esqueço da dor, me afasto da minha filha
(O Pai da Menina Morta , Tiago Ferro, Todavia, 2018)

{sexta-feira}
Eu não quero ser O Pai da Menina Morta. Eu sempre serei O Pai a Menina Morta. Não estou procurando ou exigindo qualquer tipo de justiça. Eu simplesmente aceito a dor aguda na ausência. No vazio. Nós também somos feitos de espaços em branco. Nosso corpo não é uma massa densa. É preciso lembrar disso. Há centenas de cavidades, buracos, esconderijos, zonas mortas, terrenos baldios.
(O Pai da Menina Morta, Tiago Ferro, Todavia, 2018)

Quando o mundo começa a se despovoar das pessoas que nos amam, pouco a pouco vamos nos transformando em desconhecidos, ao ritmo dessas mortes. Meu lugar no mundo estava no seu olhar e ele me parecia tão incontestável e eterna que nunca me incomodei em ver qual era
(Isso Também Vai Passar , Milena Busquets, Companhia das Letras 2014)

O Mauro amava essa história. Gosto de ser eu quem agora a escuta e, de novo, me ocorre que talvez seja isso o que querem dizer quando comentam que você pode notar os mortos, que é dentro de si que se pode manter os outros vivos.
(Aprender a Falar Com as Plantas, Marta Orriols, Dublinense, 2022)

Não fujo, Mauro. Apenas vou embora. Voltarei às vezes para dizer oi para as plantas e também não me esquecerei da sua morte. Esquecê-la seria deixar você morrer uma segunda vez e isso, pode ter certeza, não acontecerá.
(Aprender a Falar Com as Plantas" Marta Orriols, Dublinense, 2022)

O luto não é etéreo; ele é denso, opressivo, uma coisa opaca. O peso é maior de manhã, logo depois de acordar: um coração de chumbo, uma realidade obstinada que se recusa a ir embora.
(?) Como é possível o mundo seguir adiante, inspirar e expirar de modo idêntico, enquanto dentro da minha alma tudo se desintegrou de forma permanente?
(Notas Sobre o Luto, Chimamanda Ngozi Adichie, Companhia das Letras, 2021)

Pedir a Deus para não sofrer é como pedir para voar. Mas a gente pede assim mesmo e depois fica com raiva do pobre coitado. O sofrimento é certo como a morte e tão inegociável quanto (...) O que peço a Deus com fervor é para dar conta. Pede também, filha. Pede para dar conta. A gente passa a vida pelejando com o dilema de existir ou desistir, com o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, a morte e a vida. Essas coisas não se separam. O lugar que dói é o mesmo que sente arrepios. É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado. Então, pede para a parte boa dar conta da parte ruim.
(Tudo É Rio, Carla Madeira, Editora Record, 2021)

Os mortos são sempre preferidos aos vivos. Preferimos os mortos devido a nossa ligação, a nossa identificação com eles. Sua impotência, sua passividade, sua vulnerabilidade são as nossas. Todos aspiramos ao estado de inanição, à condição de impotência, em que somos forçosamente frágeis e merecedores de amor.
(A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os Limites da Biografia, Janet Malcolm, Companhia de Bolso, 2012)

(...) junto ao estranhamento provocado pela resposta sobre a causa de sua morte (ela faleceu em decorrência de uma infecção nos pés) , vem sempre a pergunta ainda mais incômoda: "Quantos anos ela tinha?", ao que eu sou obrigada a responder, já antevendo o olhar aliviado que se seguirá: 93 Noventa e três anos de vida simplificam tudo. "Ah, bom, então ela viveu muito, teve uma família linda..."
(Lili, Novela de Um Luto, Naomi Jaffe, Companhia das Letras, 2021)

A facilidade absurda em registrar imagens revela um traço bastante curioso dos nossos tempos: materialistas ao extremo, somos incapazes de conviver com a transitoriedade da vida. Aos nossos olhos, tudo é descartável, menos nós mesmos.
(Fundo do Poço, o Lugar Mais Visitado do Mundo: Notas de Viagem, Cris Guerra, Melhoramentos, 2021)

O luto é muito desconfortável. Principalmente para os outros. Por isso, tão logo têm uma oportunidade, tratam de olhar em torno, identificar pessoas que também tenham passado por perdas semelhantes para empurrá-los uns para os outros , juntar suas dores e, de preferência, evitar espalhar sua tristeza para alguém mais.
(The Hot Young Widows Club, Nora Mcinerny, disponível apenas em inglês)

Como não tive filhos, a coisa mais importante que me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isso me refiro à morte dos meus entes queridos. Talvez você ache isso lúgubre, mórbido. Eu não vejo assim. Muito pelo contrário: para mim é uma coisa tão lógica, tão natural, tão certa. Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A Terra detém sua rotação e as trivialidades com que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar durante um instante pela fresta da verdade -- monumental, ardente e impassível. Nunca nos sentimos tão autênticos quanto ao beirarmos essas fronteiras biológicas: temos a clara consciência de viver algo grandioso.
(A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver , Rosa Montero, Todavia, 2019)

Oh, não, o luto e a vida não têm nada a ver com isso. Na verdade, a vida é tão tenaz, tão bela, tão poderosa, que mesmo nos primeiros momentos da dor você pode gozar de instantes de alegria: a delícia de uma linda tarde, uma risada, uma música, a cumplicidade com um amigo. A vida abre passagem com a mesma teimosia com que uma plantinha minúscula é capaz de rachar o chão de cimento e botar a cabeça para fora. Mas, ao mesmo tempo, a tristeza também segue seu curso. E é com isso que nossa sociedade não lida bem: logo escondemos ou proibimos o sofrimento tacitamente.
(A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver, Rosa Montero, Todavia, 2019)

A arte é uma ferida feita de luz, dizia Georges Braque. Precisamos dessa luz, não apenas quem escreve, pinta ou compõe músicas, mas também aqueles que lêem, vêem quadros ou ouvem um concerto. Todos precisamos da beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou isso muito bem: "A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta". Não, não basta. Por isso estou escrevendo este livro. Por isso você o está lendo
(A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver, Rosa Montero, Todavia, 2019)