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OPINIÃO

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'De Mãos Dadas': livro conta jornada de um filho se despedindo da mãe

Após despedir-se de sua mãe, o palhaço Claudio Thebas dialoga com seu amigo Alexandre Coimbra sobre o luto - Arquivo pessoal
Após despedir-se de sua mãe, o palhaço Claudio Thebas dialoga com seu amigo Alexandre Coimbra sobre o luto Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

16/06/2022 04h00

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Dona Ignez (a Ig) teve a melhor companhia na hora de sua despedida. A companhia de um palhaço muito especial: seu filho Claudio Thebas, que ela chamava de "fio". O Claudio, por sua vez, teve a ajuda da família e de seu amigo Ale, o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, que deixa de lado a erudição da profissão e usa seu coração para estar com seu amigo em sua difícil conexão com o luto no livro "De Mãos Dadas" (Selo Paidós da Editora Planeta, lançamento no fim do mês de junho), que escreveram juntos.

Foi tamanha a minha identificação com a história do Claudio que é difícil colocar em palavras. Há menos de um ano, passei pela mesma situação, a de me despedir da minha mãe. E a história dele e da Ig traz situações muito parecidas com as que eu e meus irmãos passamos com nossa mãe. Assim, agradeço esse palhaço e seu amigo que trouxeram minha mãe em cada página desse livro.

O comportamento das pessoas acima de 90 anos frente à morte deve ser muito semelhante, porque eu tinha a impressão do Claudio estar falando da Duda, a minha mãe: uma pessoa maravilhosa, amiga dos filhos, netos e bisnetos. Não importava a idade, todos da família viviam na casa da Duda, trocavam notícias e muitos segredos. Uma pessoa inesquecível. Mas que, frente à doença e à dor, ficava muito irritada. Diante da angústia da doença e da fraqueza, expressava sua revolta em forma de malcriações. Diante do medo, acalmava com o abraço dos filhos.

Entendi, pelo livro do Claudio e do Ale, que a morte das pessoas acima dos 90 costuma ser uma jornada. Quase uma jornada de entendimento e aceitação, para depois poder partir. Nesse momento, pessoas de mãos dadas são o maior condutor da esperança. De mãos dadas é tudo tão mais fácil e mais possível.

Em determinado momento dessa jornada, o assunto morte se torna recorrente. E se você tiver a sorte de ter um filho palhaço, como a Ig, ainda vai poder dar boas risadas juntos. Neste lindo trecho, ele conta como começaram a falar sobre a morte:

Acredito que isso aconteceu porque eu provavelmente estava percebendo nela uma fragilidade física que encurtava a distância entre o discurso sobre a morte e a sua morte concretamente. Passamos a falar da morte com tanta naturalidade que, acredite, éramos capazes de rir muito. Não um riso de deboche, mas de intimidade com ela. Hoje percebo como isso foi importante para mim e agradeço à minha mãe pela delicada persistência. A naturalidade com que passamos a tratar do assunto me fez relembrar que a morte sempre está ao nosso lado, de mãos dadas com a vida."

Claudio e Ale, seu amigo psicólogo, alternam os capítulos do livro. Claudio fala sobre sua experiência de luto e Ale comenta seus sentimentos e busca da compreensão do que seja um filho perder uma mãe.

Sobre a decisão de falar sobre a morte com quem é terminal ou está no fim da vida, Ale acredita que isso amplia a consciência da vida: "Conversar com quem está morrendo é dar-lhe a oportunidade de entender melhor o que fazer com o pouco tempo que lhe resta, é receber dessa pessoa a vida que fagulha apesar do epílogo, é construir amplidão no corredor do tempo finito."

Ao começar a escrever o livro, Claudio vivia o luto pela morte de sua mãe há 2 meses e meio. Aquele momento que você ainda está se entendendo com a imensa falta:

O que eu sinto é um enorme vazio no peito. Um buraco. Só peço que me escutem em silêncio e permitam que os seus silêncios escutem o meu. Estou no meio de um trecho íngreme da estrada. Eu, Claudio, palhaço, meu sapato e minha mala cheia de perdas. Meu CPF, meu RG. Minha identidade se completa com as minhas lacunas. É preciso honrar meus vazios, minha alma crivada de ausências."

Tem razão, Claudio, você já coleciona grandes perdas: sua avó, sua irmã, que morreu de câncer aos 52 anos, seu pai e agora sua mãe.

A morte de Ig fez com que Claudio se conectasse com seus lutos anteriores. É como se a última perda carregasse todas as outras. Sinto exatamente a mesma coisa: a morte da minha mãe se somou à perda do meu pai e do meu filho Paulo. O Claudio fala com extrema sensibilidade sobre esse sentimento:

Nesse ciclo, parece que todas as mortes resolveram morrer de novo para que eu pudesse viver as perdas que não vivi. Nesses anos todos eu me preocupei tanto com os vivos que não me lembro de ter chorado os mortos. Cuidei da minha mãe quando perdi minha avó, dos meus pais quando perdi minha irmã, da minha mãe quando perdi meu pai. Escrevo estas palavras, escuto minha própria voz e pumba! Caio do gira-gira e tombo em mim: não cuidei de todos eles só por amor. Preciso admitir isso. Cuidei deles também, e talvez principalmente, por medo. Pelo mais absoluto medo de também os perder. No fundo, cuidei deles para cuidar de mim antecipadamente. Mas agora o futuro chegou, não há o medo de uma morte eminente, então me sinto numa sala de aula, na hora da chamada:

Passado?

Presente!

Minha avó morreu essa semana, minha irmã morreu essa semana, meu pai morreu essa semana, minha mãe morreu faz 3 meses e esta semana."

Claudio fala também do cansaço físico que você sente nas despedidas e novamente eu me lembro dos meus lutos. Ele brinca que, se na linguagem popular o trator costuma passar em cima de algumas pessoas, nesse momento o trator resolveu estacionar em cima dele: "Foi meio assim que eu me senti essa semana: total ausência de energia vital. Uma (des)vontade de deitar e dormir. Mas quando eu me deitava não dormia, e quando dormia acordava como se não tivesse dormido. Acho que nunca precisei tanto dormir. Dormir cada lágrima de choro não chorado, dormir o tempo de cada tristeza não vivida, dormir o tempo que não me dei de cada perda. Precisava dormir tempo. Chorar tempo."

Passar por um luto é ganhar intimidade com a saudade. Em "De Mãos Dadas", o psicólogo Alexandre fala lindamente sobre a importância de se viver as lembranças e a saudade verdadeira:

No ato de lembrar, também inventamos. E, assim, também entendemos que a morte não é um total epílogo. Passamos a ver coisas que não víamos, a entender importâncias que estavam ocultas, a sentir raivas, medo, alegrias que estavam reprimidas e que agora podem encontrar a liberdade de sair às ruas. A saudade é como a música de Caetano. Ela quer seguir vivendo, sem nada no bolso ou nas mãos. Para a saudade, basta o direito de revisitar o que se foi e o que não se pôde ser. Para a saudade, a morte e o luto são terrenos de ávida fertilidade narrativa. Ali, naquela terra dolorida, há novas formas de aprender a amar. O amor nasce do reencontro com aquilo que somos, e é mesmo a única coisa desse mundo que é, sim, maior do que a morte."

Que linda essa imagem, Ale: o amor é a única coisa maior do que a morte. É muito verdade: o amor é maior do que tudo.

Em determinado momento, Claudio conta que Ig começou a dar sinais de que não estava mais aguentando aquela situação. "Ela estava no limite. Não aguentava mais o mal-estar, a rotina de remédios, injeções, soro e o constrangimento de ter alguém que lhe desse banho", escreve.

Claudio e sua família continuaram de mãos dadas com a Ig e foi assim, de mãos dadas, que ela se despediu de seu "fio", que chorou de tristeza, mas também de muita beleza: as trocas da vida toda, as conversas sinceras, a conexão profunda que construíram na despedida, a compreensão mútua do ciclo da vida e as mãos sempre dadas fizeram a vida valer a pena.

Depois de me emocionar com cada texto do Claudio e do Ale, encontro explicação para tanta sensibilidade ouvindo Luis Viera da Rocha, presidente da associação Doutores da Alegria, que fala sobre a ligação estreita entre o palhaço e a dor:

Como podemos respirar enquanto tudo desmorona? Enquanto estamos sentindo a dor da perda? Pode parecer contraditório, mas acredito que a figura do palhaço é um caminho.

Porque a humanidade do palhaço dialoga com a nossa própria humanidade, com os nossos medos, angústias, tristezas. Se aquele personagem tão falho se permite sentir, se permite viver o erro e ainda brinca com isso, como podemos não acolher e ressignificar os nossos próprios sentimentos?"

Obrigada Claudio, obrigada Ale, vocês me permitiram acessar uma camada a mais dos meus sentimentos e também conhecer o tanto de amor que cabe em um palhaço.