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Blog da Sophie Deram

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Internações de adolescentes com transtorno alimentar aumentaram na pandemia

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

14/07/2021 04h00

Um estudo recente, publicado na revista Pediatrics, revela um pico de hospitalizações por transtornos alimentares na adolescência, fase da vida que pode estar especialmente vulnerável às consequências sociais negativas da pandemia, incluindo o isolamento social.

Covid-19 e os transtornos alimentares

No dia 11 de março de 2020 a infecção pelo Sars-CoV-2 (o novo coronavírus) passou a ser considerada uma pandemia pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Diversas medidas foram adotadas para conter a transmissão do vírus e persistem até hoje, sendo o isolamento social a principal delas, ao lado do uso da máscara e da higiene constante das mãos com água e sabão ou álcool em gel.

Com isso, mudanças significativas foram instaladas em nossas vidas. Além da insegurança, medo e estresse diante da possibilidade de contrair o vírus, as novas realidades de trabalho, as incertezas financeiras e as mudanças na educação dos filhos têm afetado muitas pessoas e gerado sofrimentos e piora de saúde mental. Dentro dessa situação, os transtornos alimentares parecem estar aumentando.

Os transtornos alimentares são uma classe de transtornos mentais, cujos mais conhecidos são: anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno da compulsão alimentar, caracterizados, de forma geral, por relações difíceis com a comida e com o corpo.

É verdade que com a pandemia algumas pessoas começaram a cozinhar mais, a comer melhor e mesmo alguns que sofrem com transtornos alimentares apresentaram melhoras e passaram a se relacionar melhor com a comida, como vi em meu consultório.

Mas também é inegável: o momento é delicado e não é de se estranhar que possa levar ao exacerbamento de transtornos alimentares ou ao seu desenvolvimento e de outros problemas de saúde mental. Principalmente quando levamos em consideração a adolescência, ciclo de vida mais propício a apresentar transtornos alimentares e especialmente vulnerável às consequências sociais negativas da pandemia.

Além de tudo isso, o estudo realizado pela Universidade de Michigan levou em consideração que adolescentes com transtornos alimentares, devido à pandemia, podem ter diagnóstico e tratamento tardios, pois em muitos contextos o atendimento clínico presencial é interrompido e limitado, como medida para reduzir o risco de transmissão de covid-19.

Por outro lado, os atendimentos online podem limitar as avaliações clínicas, o exame físico e a avaliação do ganho ou perda de peso e gerar uma dificuldade de confidencialidade em ambientes virtuais, no caso de os adolescentes morarem com seus pais.

Diante disso, o objetivo do estudo foi avaliar se os padrões de admissão entre adolescentes com transtornos alimentares mudaram durante a pandemia no Hospital Infantil C. S. Mott, localizado em Ann Arbor, Michigan (EUA).

Para isso, os pesquisadores realizaram uma revisão de prontuários de pacientes com idades entre 10 e 23 anos internados no hospital infantil por transtornos alimentares de março de 2017 a março de 2021.

Os números de internações por transtornos alimentares dobraram durante a pandemia

Essa pesquisa mostrou que o número de adolescentes internados nesse hospital por transtornos alimentares aumentou significativamente durante a pandemia da covid-19.

O número total de admissões durante os primeiros 12 meses da pandemia (1º de abril de 2020 a 31 de março de 2021) foi 125, representando mais que o dobro do número médio de internações por ano nesse mesmo período em 2017, 2018 e 2019 (56 admissões).

De acordo com os pesquisadores, um número mais alto de admissões por transtornos alimentares foram observadas próximo ao período final do estudo (nove a 11 meses após o início da pandemia). No entanto, não está claro se este aumento é decorrente do atraso nos atendimentos e/ou se representam um maior volume de casos incidentes, sendo necessário um estudo mais aprofundado para investigar e determinar os fatores que levaram a esses números.

Entre as explicações para os resultados, acredita-se que a pandemia da covid-19 e as medidas necessárias para contê-la podem estar associadas ao agravamento de sintomas entre adolescentes com transtornos alimentares ou com o surgimento de sintomas entre aqueles com riscos para desenvolver essas doenças.

Isso também está de acordo com uma experiência clínica dos pesquisadores com pacientes observados em vários ambientes clínicos: unidades de internação, ambulatórios, programa de internação parcial de transtornos alimentares. Eles apresentaram novos sintomas ou agravamento daqueles associados às precauções da pandemia.

Os pesquisadores apontam essas descobertas como fruto de uma pesquisa limitada pelo tamanho da amostra e por refletirem a experiência de uma única instituição, sendo necessárias mais investigações.

No entanto, os resultados estão de acordo com relatórios que sugerem o desenvolvimento de uma epidemia (dentro da pandemia da covid-19) com profundos efeitos negativos na saúde física e mental de adolescentes em todo o mundo, e também com um estudo Collate australiano, realizado com 5469 participantes, dos quais 180 relataram ter transtorno alimentar.

O objetivo deste último foi identificar mudanças nos comportamentos alimentares entre pessoas com e sem transtornos alimentares durante o início da pandemia de covid-19. Foram observados mais comportamentos alimentares restritivos, purgação e compulsão tanto entre a população geral quanto entre as pessoas que afirmaram sofrer com transtornos alimentares.

Possíveis explicações para o aumento de internações por transtornos alimentares

Embora não se saiba completamente quais as causas dos transtornos alimentares, as evidências atuais mostram que se trata de um problema de saúde multicausal e biopsicossocial, com influências genéticas, de fatores psicológicos e influências socioculturais.

Em relação às questões psicológicas, os adolescentes com baixa autoestima e depressão, agravados na pandemia, apresentam maior propensão para desenvolver transtornos alimentares.

Além disso, mudanças na rotina decorrentes do fechamento de escolas e cancelamento de esportes podem contribuir para o desenvolvimento de comportamentos alimentares inadequados em pessoas com risco para desenvolver transtornos alimentares.

Os pesquisadores também relatam experiências clínicas anteriores no artigo. Segundo eles, no início da implementação das medidas para conter a pandemia, muitos adolescentes alegaram se sentir ociosos ou com mais tempo para fazer dietas (lembre-se: nem toda dieta leva a transtornos alimentares, mas quase todo transtorno alimentar é iniciado com uma dieta) e para praticar exercícios físicos.

Sem falar que a pandemia impactou as relações sociais entre adolescentes, levando-os cada vez mais às redes sociais na intenção de se manterem conectados, e o seu próprio uso já foi sugerido como importante no desenvolvimento de transtornos alimentares.

Se está sofrendo com transtornos alimentares, não hesite em buscar profissionais especializados

Como dito pelos pesquisadores, a internação hospitalar costuma ser o início, e não o final do tratamento, geralmente longo.

Isso sugere ainda que, diante das limitações do estudo, esses números podem representar apenas uma pequena proporção de transtornos alimentares afetados pela pandemia, pois foram incluídos somente as doenças graves que levaram à hospitalização.

Um grande número de pessoas podem estar sofrendo com os transtornos alimentares e necessitam de tratamento e cuidado.

Dessa forma, se você ou alguém que você conhece tem uma relação difícil com a alimentação e com o corpo, identifica que isso tem trazido problemas para a vida e para o dia a dia, busque profissionais de saúde especializados (nutricionista, psicólogo e médico psiquiatra) o quanto antes. Se você está próximo de adolescentes, vale a pena dar uma atenção especial ao comportamento deles na pandemia. Acolher e apoiar.

No Brasil há vários centros de apoio. O Ambulim (Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), onde sou voluntária e pesquisadora há 15 anos, é o maior centro do Brasil e oferece tratamento gratuito e de qualidade pelo SUS, sendo referência em atendimento, ensino e pesquisa no país e na América Latina.

Sophie Deram