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Blog da Sophie Deram

OPINIÃO

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Ultraprocessados podem viciar? Estudo mostra relação com "vício por comida"

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

28/04/2021 04h00

Sabemos que o consumo de alimentos pode ativar nosso sistema de recompensa e provocar reações muito gratificantes, podendo gerar comportamentos semelhantes ao abuso de certas drogas. Por isso, fala-se em "vício alimentar".

Mas a comparação não é tão simples assim. Um grupo de pesquisadores americanos, liderado por Ashley Gearhardt, da Universidade de Yale, publicou um artigo sobre o tema na revista Plos One.

Eles consideram que nem todos os alimentos causam comportamentos alimentares semelhantes ao de dependência e partem da hipótese de que os alimentos ultraprocessados, particularmente recompensadores, pela adição de gorduras e carboidratos, poderiam estar associados ao "vício em comida".

O que é "vício em comida"?

O uso desse termo é controverso, pois hoje não há evidência científica de qualidade que confirme que existe um "vício em comida". Além disso, pode contribuir com o terrorismo alimentar e criar um estigma em torno dos alimentos, sem falar que outras atividades também podem ser gratificantes e ativar áreas do cérebro responsáveis pela recompensa, como a prática de atividade física.

De qualquer forma, comportamentos como: perda de controle diante da comida, consumo frequente de certos alimentos apesar de ter conhecimento de suas consequências negativas para a saúde e desejo de reduzir o consumo de determinados alimentos, mas incapacidade de fazê-lo são considerados comportamentos alimentares semelhantes aos de dependência ou "vício em comida".

Nesse caso, as pessoas geralmente comem mais do que acham que deveriam, sentem que perdem o controle diante da comida e acreditam ser preciso comer cada vez mais certos alimentos para atenuar sentimentos negativos ou obter mais prazer, gerando um forte sofrimento diante da alimentação, como acontece em quadros de compulsão alimentar.

Levando-se em consideração que as substâncias que causam dependência raramente estão em seu estado natural, mas foram alteradas de maneira a aumentar seu potencial viciante (por exemplo, folhas de coca são transformadas em cocaína e as papoulas, em ópio), os pesquisadores levantaram a hipótese de que algo semelhante poderia acontecer com os alimentos ultraprocessados, que passam por diversos processos industriais, em geral com adição de gorduras, açúcares, adoçantes artificiais e outros aditivos alimentares.

Investigando o "vício alimentar" em alimentos ultraprocessados

Para testar a hipótese, foram realizados dois estudos.

O estudo 1:

Nele, 120 participantes completaram a Escala de Dependência Alimentar de Yale (YFAS). A própria Ashley Gearhardt, líder do estudo, desenvolveu em colaboração com outros pesquisadores a escala, usando critérios diagnósticos para dependência de substâncias do Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV) para quantificar sintomas de alimentação semelhante à dependência.

As pessoas deveriam responder com que frequência apresentavam comportamentos de "vício em comida" a partir de afirmações como: "eu passo muito tempo me sentindo lento ou letárgico por comer demais"; "tenho problemas significativos na minha capacidade de funcionar de forma eficaz (rotina diária, trabalho/escola, atividades sociais, atividades familiares, dificuldades de saúde) por causa da alimentação"; "meu comportamento em relação à comida causa um sofrimento significativo".

Em seguida, os participantes escolheram quais alimentos (35 deles com variáveis composições nutricionais) estavam mais associados a comportamentos alimentares semelhantes aos de dependência.

O estudo 2:

Usando os mesmos 35 alimentos, o estudo 2 investigou quais atributos dos alimentos (por exemplo, gramas de gordura, carga glicêmica) estavam relacionados ao "vício em comida" e explorou a influência das diferenças individuais para esta associação.

Ultraprocessados podem ser mais "viciantes" pela adição de gordura e açúcares

A partir dessa pesquisa, foi observado que os alimentos ultraprocessados, com grandes quantidades de gordura e elevada carga glicêmica, foram mais propensos a apresentarem associação com comportamentos alimentares semelhantes ao de dependência.

Ou seja, parece que um alimento in natura tem menos probabilidade de desencadear uma resposta viciante em comparação com um alimento ultraprocessado, como um biscoito recheado.

As gorduras, geralmente adicionadas a esses alimentos, podem tornar os alimentos mais saborosos e até hiperpalatáveis, gerando uma busca maior por eles. Já a carga glicêmica, que reflete não apenas a quantidade de açúcar em um alimento, mas também a velocidade com que esse açúcar é absorvido, foi comparada pelos pesquisadores ao fato de as substâncias viciantes em doses concentradas e com rápida taxa de absorção aumentarem seu poder de dependência.

Por exemplo, o açúcar de um alimento ultraprocessado e com alta carga glicêmica, como uma barra de chocolate ao leite, será mais rapidamente absorvido pelo organismo do que os açúcares presentes em uma banana. Isso ocorre porque, embora a banana contenha açúcar, também apresenta fibras, proteínas e água, que diminuem a taxa de entrada do açúcar na corrente sanguínea.

Quanto às características individuais, as pessoas com pontuações elevadas na escala YFAS, que geralmente experimentam comportamentos alimentares mais problemáticos, também relataram maior dificuldade com alimentos contendo carboidratos refinados de rápida absorção e que produzem um alto pico de açúcar no sangue.

A solução para o "vício em comida" é excluir os ultraprocessados?

Diante desses resultados, talvez você esteja vendo os alimentos ultraprocessados como vilões que devem ser eliminados totalmente da sua alimentação. Mas não é bem assim.

Realmente, os alimentos ultraprocessados hoje fazem parte da nossa alimentação em quantidades maiores do que o desejável, mas a solução não está na exclusão, e sim na redução.

Sabemos que percebê-los como alimentos proibidos ou "viciantes" pode gerar ainda mais desejo por esses alimentos, contribuindo para o exagero alimentar.

Uma estratégia mais eficaz e que pode contribuir bastante para evitar o "vício em comida" é adotar uma alimentação variada e incluir cada vez mais alimentos frescos e caseiros. Dessa forma, é possível não só aumentar o consumo de alimentos in natura, mas diminuir, por consequência, o consumo de alimentos ultraprocessados, que devem ficar limitados a momentos ocasionais, como exceção, e não regra na alimentação.

No entanto, para isso acontecer, são necessárias não apenas ações individuais, mas também políticas, pois muitas questões que envolvem a alimentação estão imbricadas com a sociedade, as emoções, hábitos e experiências, tornando nossas escolhas alimentares fruto de diversas questões das quais muitas vezes não temos consciência.

Você, provavelmente, já escolheu um ultraprocessado no mercado sem se dar conta disso. Constantemente somos expostos a esses alimentos, que são saborosos, atraentes, práticos, baratos, abundantes, mas pouco benéficos para a nossa saúde.

Assim, são necessárias medidas, como taxar bebidas e alimentos ultraprocessados, limitar a publicidade de alimentos (principalmente daqueles direcionados para crianças) e, ao mesmo tempo, incentivar a produção e o consumo de alimentos in natura.

Bon appétit!

Sophie Deram