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Blog da Sophie Deram

Conhece o Guia Alimentar para a População Brasileira? Eu apoio e você?

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

23/09/2020 04h00

Após consulta pública por diversos setores da sociedade, a segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira foi publicada em novembro de 2014. Hoje esse guia vem recebendo críticas e a maioria delas vêm de representantes da indústria alimentícia.

Já em fevereiro de 2014, Edmund Klotz, então presidente da Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), em relatório anual, posicionou-se contrário à publicação da nova versão do Guia, afirmando que esse instrumento não considera as preocupações do setor privado.

No dia 16/09/2020, uma Nota Técnica nº 42/2020 foi emitida pelo Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). Essa nota é dirigida ao Ministério da Saúde que elaborou o Guia Alimentar e solicita uma revisão urgente dessa publicação voltada para a população brasileira.

Isso provocou bastante indignação por parte daqueles que defendem o Guia e uma alimentação saudável. O Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da Universidade de São Paulo, contestou a solicitação de revisão em nota oficial.

O que deseja a Nota Técnica que solicita revisão do Guia Alimentar?

O que parece ser mais incômodo para os solicitantes da revisão é a classificação NOVA que o Guia traz dos alimentos, baseada no grau de processamento industrial e descrita na Nota Técnica nº 42/2020 como "confusa, incoerente e prejudica a implementação de diretrizes adequadas para promover a alimentação adequada e saudável para a população brasileira".

Para quem não sabe, a NOVA classifica os alimentos em 4 grupos:in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados.

Tomando um exemplo do próprio guia, uma espiga de milho verde é um alimento in natura; o milho em conserva e enlatado é processado, pois apresenta adição de sal; e o salgadinho de milho é ultraprocessado, pois sua matéria-prima está bastante processada e é composto por diversos ingredientes, como sal, gorduras, aromatizantes, aditivos e conservantes.

Já falei aqui para você sobre a importância de comer melhor, termos uma alimentação baseada em alimentos in natura, frescos e caseiros e diminuirmos os alimentos ultraprocessados, o que conseguimos ao cozinhar mais. Quando falo isso estou me referindo aos meus anos de estudos de ciências como Agronomia, Nutrição, Nutrigenômica, e Neurociência do comportamento alimentar. O Guia sempre colocou com regra de ouro: "Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados". Ele tem sido elaborado com base em evidências científicas que ao longo dos anos têm sido cada vez mais confirmadas, como mostra uma revisão sistemática publicada há pouco. Ela revela uma associação positiva entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o excesso de peso corporal.

No entanto, com base em um artigo publicado em 2012 financiado pelo International Food Information Council, organização que recebe apoio das indústrias de alimentos, de bebidas e da agricultura, os autores da nota técnica insistem que "Pesquisas demonstram que não existem evidências de que o valor nutricional e a saudabilidade de um alimento estejam relacionados aos níveis de processamento, uma vez que existem alimentos processados que contribuem com uma ampla variedade de nutrientes em todos os níveis de processamento" e que "os determinantes mais importantes da qualidade da dieta são os tipos específicos de alimentos consumidos e não o seu nível de processamento".

Quanto a esse ponto, o Nupens, em nota oficial, destaca que o documento emitido pela MAPA "omite os mais de 400 estudos científicos indexados na base PubMed que utilizaram a classificação NOVA e o conceito de alimentos ultraprocessados", e que demonstram a associação entre o consumo desses alimentos e o risco de doenças crônicas. Aproveito para lembrar que esta classificação também é reconhecida pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), como podemos ver nesta publicação.

O Guia Alimentar sugere que uma forma prática de distinguir alimentos ultraprocessados e processados é consultar a lista de ingredientes e considerar que um número elevado deles (geralmente mais de cinco) e principalmente a presença de nomes de ingredientes pouco familiares e que não são utilizados nas preparações culinárias caseiras (espessantes, emulsificantes, aromatizantes, xarope de glicose, etc.) indicam que se trata de um alimento ultraprocessado.

De forma desrespeitosa, a nota técnica considera que "em relação a diferenciação de 'alimento ultraprocessado' por meio da contagem do número de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) parece ser algo cômico" e "um evidente ataque sem justificativa a industrialização".

Também critica a Regra de Ouro do Guia Alimentar de preferir sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias aos alimentos ultraprocessados, vista pela nota técnica como perigosa, pois "o uso apenas de alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias em consumo excessivo está associado a doenças do coração, obesidade e outras doenças crônicas, de forma semelhante as outras categorias de alimentos, várias vezes colocadas neste documento". No entanto, os autores esquecem de embasar este argumento que não parece ter validade científica alguma.

Em resposta, o Nupens lembra que a nota técnica ignora "o fato de que o Guia Alimentar enfatiza os vários benefícios do processamento de alimentos —como ampliar sua duração e diversificar a dieta — recomendando que se evite apenas o consumo de alimentos ultraprocessados" e diante da inconsistência dos argumentos apresentados confia "que o Ministério da Saúde e a sociedade brasileira saberão responder à altura o que se configura como um descabido ataque à saúde e à segurança alimentar e nutricional do nosso povo".

Vale lembrar que tendo sido construído com base em evidências científicas, não tenho dúvidas que o Guia realmente mereça ser revisado, pois a ciência muda rapidamente e outros estudos poderiam atualizar e melhorar esse documento. Assim como a nota técnica em questão, acredito que seja necessária a participação de outros especialistas nessa discussão, como engenheiros de alimentos, mas também agrônomos, psicólogos, educadores, entre tantos outros profissionais, pois a alimentação é muito complexa e necessita de muitos saberes para ser estudada de uma forma mais ampla.

No entanto, gostaria de enfatizar a importância de que uma revisão do Guia não seja realizada com a interferência de interesses econômicos e da indústria (como parece sugerir a nota técnica em questão), pois a preocupação com a saúde da população precisa ser o objetivo central.

Por que o Guia Alimentar para a População Brasileira é muitas vezes considerado o melhor do mundo?

Por fim, gostaria de dar ênfase à seguinte afirmação na conclusão da Nota Técnica: "atualmente o Guia brasileiro é considerado um dos piores".

Essa frase não leva em consideração que o Guia Alimentar para a População Brasileira é um documento de referência no mundo todo, inspirando diversos países, e sendo considerado um exemplo a ser seguido pela FAO, OMS (Organização Mundial da Saúde), Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), como mostra o Nupens que também citou "um rigoroso estudo publicado em 2019 pela revista Frontiers in Sustainable Food Systems, que elegeu o guia alimentar brasileiro como o que melhor atendia a critérios previamente estipulados quanto à promoção da saúde humana, do meio ambiente, da economia e da vida política e sociocultural".

Para você ficar sabendo, todo esse sucesso do Guia Alimentar não é à toa, trata-se de uma publicação inovadora, pioneira. Geralmente as recomendações sobre alimentação dos países são baseadas em uma abordagem reducionista, baseada somente no nutriente e não no alimento, sem considerar seu contexto familiar, social e político.

Como sempre falo: o ato de comer é fisiológico e psicológico. O Guia estipula claramente que alimentação é mais que ingestão de nutrientes. Ele está focado não somente nos nutrientes, nas calorias ou na perda de peso, mas sim nas refeições, incentivando o hábito de cozinhar, de comer junto e o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao marketing e às informações relacionadas à alimentação.

Com isso, o Guia propõe 10 passos para uma alimentação saudável, que deixo aqui para ajudar você a transformar sua relação com a comida.

  1. Fazer de alimentos in natura ou minimamente processados a base da alimentação;
  2. Utilizar óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades ao temperar e cozinhar alimentos e criar preparações culinárias;
  3. Limitar o consumo de alimentos processados;
  4. Evitar o consumo de alimentos ultraprocessados;
  5. Comer com regularidade e atenção, em ambientes apropriados e, sempre que possível, com companhia;
  6. Fazer compras em locais que ofertem variedades de alimentos in natura ou minimamente processados;
  7. Desenvolver, exercitar e partilhar habilidades culinárias;
  8. Planejar o uso do tempo para dar à alimentação o espaço que ela merece;
  9. Dar preferência, quando fora de casa, a locais que servem refeições feitas na hora;
  10. Ser crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre alimentação veiculadas em propagandas comerciais.

Bon appétit!

Sophie Deram