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Rico Vasconcelos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A máquina do tempo do retrocesso no combate às epidemias

Brasil Escola
Imagem: Brasil Escola

Colunista do UOL

27/05/2022 04h00

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Na última semana, me senti na década de 1980. A sensação de desarranjo temporal, no entanto, não foi motivada por um telefone com fio de discar, nem pela presença do Michael Jackson na televisão, mas por dois temas que encontrei nos trending topics do Twitter.

Em um deles, era noticiada a determinação pela prefeitura de Madri, na Espanha, do fechamento de uma sauna gay como medida de controle do surto de casos de varíola de macacos, detectado no início de maio no continente europeu.

No outro, uma reportagem publicada na Folha de S.Paulo repreendia duramente um rapaz, que se autoproclama coach de sedução, por ter dito em um vídeo do YouTube que não gostava de usar preservativo com as suas "minas".

No caso da sauna espanhola, o flashback me levou diretamente para a cidade de San Francisco, nos Estados Unidos, que em meados dos anos 80 foi o epicentro da epidemia de HIV naquele país.

Uma vez que à época os casos de infecção por HIV estavam sendo detectados de forma desproporcionalmente mais alta entre homens gays e bissexuais do que no resto da população, as autoridades de saúde pública resolveram fechar as saunas gays da cidade como medida de controle da epidemia.

Essa determinação não só não ajudou na redução dos casos de HIV, como também foi o estopim de uma guerra no debate público que perdura até hoje. O motivo era muito simples: tentou-se ali por meio de um decreto controlar a vida sexual daquelas pessoas e não a epidemia de HIV.

Quando o poder público decide classificar como proibido o sexo entre homens, ele volta a opinião pública contra os homens gays e bissexuais, estigmatizando-os. Assim, é criada a ideia equivocada de que todos os homens gays estarão infectados com HIV e de que se eu não transo com eles, estou a salvo e não preciso se preocupar com esse vírus.

Ao invés de dialogar com a comunidade gay para explicar a preocupação das autoridades de saúde pública, preferiu-se simplesmente proibir. Medida sabidamente não efetiva no controle de epidemias e que ainda fomenta a discriminação de grupos já vulnerabilizados na sociedade.

No caso do coach de sedução, o túnel do tempo me levou para o final da década de 80 e início dos anos 90, tempos em que os únicos métodos de prevenção contra o HIV disponíveis eram a abstinência sexual e a camisinha. Tempos esses em que a humanidade registrou as maiores velocidades de crescimento dessa epidemia em toda sua história.

Em dezembro de 1995, por exemplo, a OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgou uma projeção estimando que no ano de 2000 haveria no mundo 40 milhões de pessoas infectadas com HIV. Felizmente, a previsão não se concretizou e, até hoje, não chegamos nesse número. Segundo o Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids), temos hoje 37,7 milhões de pessoas vivendo com HIV no planeta.

Agora pare e reflita. Se você acha que a projeção de 1995 não se tornou realidade porque os cidadãos do mundo entenderam que "Sexo sem camisinha só com exames em dia e entre casais monogâmicos", como sugere a reportagem da Folha, saiba que está completamente enganado.

A mudança na tendência de crescimento da epidemia de HIV ocorreu com a chegada dos medicamentos antirretrovirais. Seu uso no tratamento das pessoas infectadas, tornando-as indetectáveis e intransmissíveis, e nas profilaxias pré e pós-exposição ao HIV (PrEP e PEP, respectivamente), foi o melhor reforço que a camisinha poderia receber na complexa missão de controle dessa epidemia.

Nos dois casos citados, me assusta a falta de empatia com as pessoas envolvidas, a incapacidade de se estabelecer um diálogo com a realidade delas e a crença cega em verdades fajutas.

Acreditar que se as saunas estiverem fechadas, os homens gays e bissexuais vão parar de transar é tão absurdo quanto crer que um dia será possível fazer toda a população mundial aderir ao uso do preservativo ou à monogamia. Decretos municipais, namoros e casamentos não são estratégias de prevenção.

Prevenção Combinada eficiente é a promoção do uso da camisinha, do tratamento do HIV, da PrEP, da PEP, da testagem frequente e da conversa sobre prevenção com as parcerias. É compreender que o melhor método de prevenção é o que for usado com boa adesão.

Com empatia aplicada à realidade, a abordagem da Prevenção Combinada está revolucionando o controle do HIV, reduzindo de forma inédita os novos casos dessa infecção.

Não se trata aqui de fazer apologia ao sexo em saunas e sem camisinha, mas de lembrar que as pessoas são diferentes umas das outras e existem muitas sexualidades possíveis. Compreendê-las e ajudá-las a encontrar caminhos possíveis de saúde trará resultados muito melhores para a sociedade do que insistir que o único sexo "permitido" é o heterossexual ou com camisinha.

Os exemplos bem-sucedidos na história da saúde pública estão aí para quem quiser seguir. Espero um dia poder acordar num mundo moderno em que poder público e meios de comunicação de massa os valorizem.