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Rico Vasconcelos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pessoas trans são as mais vulnerabilizadas ao HIV e as menos assistidas

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

15/04/2022 04h00

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No ano de 2021, o Brasil registrou 32.701 novos casos de infecção por HIV, segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. Esse número preocupa a saúde pública e os epidemiologistas porque, além de ainda ser alto, os casos se distribuem de forma completamente desigual na população brasileira.

Pensem comigo: trinta e poucos mil casos de uma doença em um país com mais de 200 milhões de habitantes resultariam em uma prevalência baixa desse agravo na população geral. No entanto, quando vemos que grande parte desses casos ocorre em subgrupos populacionais pequenos, entendemos por que encontramos neles prevalências muito mais altas.

Esse é o retrato da epidemia de HIV/Aids no Brasil e em diversos outros países ricos e pobres fora da África. Nesses países, a epidemia é considerada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como concentrada. Enquanto na população geral a prevalência da infecção por HIV é baixa (menor que 1%), existe pelo menos um subgrupo populacional com prevalência alta (maior de 5%).

Os subgrupos populacionais que apresentam altas prevalências de HIV podem variar de um país para o outro, mas uma característica nunca falha: eles sempre são constituídos por pessoas marginalizadas da sociedade e privadas de direitos básicos como acesso a saúde, emprego, moradia ou segurança

No Brasil, dois grupos que são desproporcionalmente mais acometidos pela epidemia de HIV/Aids são os homens gays e bissexuais e as pessoas trans. O primeiro já tem sido objeto de estudo de pesquisadores do tema há bastante tempo.

Em 2018, por exemplo, uma pesquisa realizada em 12 capitais brasileiras identificou que a média nacional da prevalência de infecção por HIV entre homens gays e bissexuais era de 18,4%, enquanto na população geral estava em torno de 0,4%. Por outro lado, os dados sobre pessoas trans sempre foram mais escassos no Brasil e no mundo, e somente nos últimos anos uma quantidade maior de estudos se dedicou a estudá-las.

Em dezembro de 2021, com a publicação do mais completo estudo sobre HIV na população trans feito até hoje, a dimensão real do peso da epidemia nesse subgrupo ficou evidente. Trata-se de uma metanálise que agrupou 98 estudos publicados na literatura médica sobre HIV em homens e mulheres trans entre os anos de 2000 e 2019. Foram incluídos na análise mais de 48.000 mulheres trans e cerca de 6.400 homens trans de todas as regiões do mundo.

A média mundial encontrada de prevalência de infecção por HIV entre mulheres trans foi de 19,9%, enquanto entre homens trans esse número foi de 2,56%. O trabalho também demonstrou que uma mulher trans que nasce nesse planeta tem 66 vezes mais risco de se infectar com HIV ao longo da sua vida, quando comparada com a população geral. Já um homem trans tem risco 6,8 vezes maior.

Essa vulnerabilidade ao HIV pode ser ainda maior dependendo da região do mundo onde a pessoa se encontra e, infelizmente, nesse aspecto a América Latina é o pior de todos os lugares. Segundo os resultados da metanálise, uma mulher trans aqui tem 95,6 vezes mais risco de se infectar com HIV do que o resto da população com mais de 15 anos de idade.

Para reduzir a alta vulnerabilidade imposta a esses subgrupos, o estudo propõe uma sequência de medidas. Primeiramente, é preciso melhorar a qualidade dos dados coletados sobre essa população. O registro dos casos de infecção por HIV não pode, por exemplo, agrupar homens gays e mulheres trans numa mesma categoria, uma vez que a vida e as dificuldades de acesso à cidadania desses dois grupos são completamente diferentes. Nem mesmo homens e mulheres trans devem ser agrupados para podermos captar as especificidades de cada um deles.

Em seguida, o poder público deve se comprometer com intervenções para redução da transfobia na sociedade, para garantir empregabilidade e o acesso à saúde integral, incluindo hormonização e PrEP.

No Brasil, até hoje a ficha de notificação de HIV não diferencia se um indivíduo é cis ou transgênero, a esmagadora maioria das mulheres trans recorre ao trabalho sexual para compor sua renda, ambulatórios de saúde integral trans são encontrados em pouquíssimos municípios e apenas 4% dos usuários de PrEP no SUS são transexuais ou não binários.

Com a melhora dos dados mundiais sobre HIV na população trans, se confirma que a priorização desse subgrupo é uma das maiores prioridades no enfrentamento da pandemia de HIV. E fica evidente como aqui no Brasil estamos ficando para trás nesse processo.