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Paulo Chaccur

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'Meu bebê recebeu o diagnóstico de uma cardiopatia congênita.' E agora?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

07/08/2022 04h00

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De uns tempos para cá, as cardiopatias congênitas —ou seja, alterações ou malformações da estrutura do coração durante seu desenvolvimento— ganharam destaque na mídia por conta do caso da filha do ator Juliano Cazarré (o Alcides do remake de Pantanal, da TV Globo), diagnosticada com anomalia de Ebstein. A doença rara fez a menina passar por uma cirurgia e encarar uma internação logo após seu nascimento.

O fato de ser informado de que um filho tem uma condição potencialmente complexa e duradoura, como uma doença cardíaca congênita, pode ser uma experiência confusa e bem assustadora, mesmo que a questão não seja tão grave. No entanto, quanto antes ela for descoberta, maiores são as chances de intervenções e tratamentos bem-sucedidos.

Ainda na barriga na mãe

A exemplo da filha de Juliano, algumas crianças diagnosticadas com cardiopatias necessitam de tratamento cirúrgico nas primeiras horas ou dias de vida, para correção do defeito congênito ou como paliativo. Em muitos casos, aliás, não é preciso nem esperar o nascimento: quando a cardiopatia congênita é detectada durante a gestação, dependendo do quadro e gravidade, conseguimos fazer uma intervenção ainda durante a formação, com o feto no útero.

Entretanto, não é possível curar a questão com o tratamento intrauterino, mas, sim, melhorar o prognóstico da doença e as condições do coração, permitindo minimizar riscos e obter uma evolução mais favorável. Em grande parte dos casos, o fato de a alteração ser detectada e tratada precocemente aumenta muito as chances de sobrevida.

Quanto mais cedo melhor!

Vale destacar que alguns defeitos cardíacos congênitos são simples e não precisam nem mesmo de tratamento (alguns podem necessitar de visitas regulares ao cardiologista por precaução). Porém, cerca de 80% das crianças diagnosticadas vão precisar de acompanhamento e cirurgia para a correção anatômica ou funcional da cardiopatia logo após o nascimento, no primeiro ano ou ao longo da vida.

O diagnóstico precoce é, portanto, fundamental. Torna possível, por exemplo, elaborar um plano de tratamento já a partir do parto: com definição de local ideal, tendo à disposição uma UTI neonatal e equipe de atendimento multidisciplinar, além da avaliação da idade gestacional e via de nascimento apropriadas.

Quando pensamos no caso dos transplantes de coração (tem cardiopatias muito graves, sem perspectiva de correção, que necessitam de um transplante), a urgência passa a ser ainda maior.

O que reforça a importância do pré-natal. Esse tipo de problema pode despertar inicialmente suspeitas durante um simples exame de ultrassom de rotina. Caso identificado o indício de alguma alteração, uma ultrassonografia especializada, a ecocardiografia fetal, será então realizada por volta da 22ª semana de gestação.

Por meio desse exame conseguimos fazer o rastreamento da má formação e uma avaliação minuciosa de anormalidades estruturais e da função cardíaca. Depois dele e dependendo do problema, outros exames e testes são realizados no bebê e no decorrer da vida desse paciente.

Um coração em formação

Durante as primeiras seis semanas de gravidez, os principais vasos sanguíneos e o coração começam a tomar forma. É nesse momento que as imperfeições cardíacas têm início.

São deformidades ocasionadas por defeitos anatômicos do coração ou dos grandes vasos, capazes de gerar uma anormalidade na função do órgão, alterações do fluxo sanguíneo e influenciar até no desenvolvimento estrutural e funcional do sistema circulatório e respiratório, além de problemas mais graves que podem colocar a vida em risco.

Se o problema não é detectado na gravidez, o que acontece?

Estimativas apontam que 50% das cardiopatias congênitas geram sintomas durante a gestação ou imediatamente após o nascimento, nos primeiros dias de vida, mas há também a possibilidade de a alteração só ser percebida e confirmada depois de alguns anos, inclusive com diagnóstico já na adolescência e, às vezes, até com o indivíduo na fase adulta.

Alguns defeitos não causam sintomas perceptíveis durante vários meses ou mesmo anos, como na comunicação interatrial, que poderá ser diagnosticada mais tardiamente. O importante é realizar todos os exames recomendados e estar sempre atento.

A presença de sintomas na infância pode servir de alerta. A investigação deve ser iniciada imediatamente quando os pais ou responsáveis notarem a presença de algum dos sinais, evitando a evolução natural da cardiopatia e suas eventuais complicações.

Quando suspeitar que uma criança tem problema no coração

De modo geral, os indicativos mudam de acordo com a faixa etária em que a cardiopatia se manifesta. Contudo, problemas graves comumente se tornam evidentes já durante os primeiros meses de vida. Alguns bebês têm pressão sanguínea muito baixa logo após o parto e dependem de medicação para manter a conexão entre o circuito pulmonar e o sistêmico.

Entre os sintomas mais comuns do nascimento ao fim do primeiro ano, podemos destacar a respiração rápida ou falta de ar, cansaço, irritabilidade, transpiração excessiva e interrupção durante as mamadas, inchaço nas pernas, abdome ou áreas ao redor dos olhos. A coloração dos lábios ou da pele apresenta também um aspecto cinza pálido ou azulado.

Em crianças um pouco maiores, agachamentos súbitos (postura de cócoras) acompanhados da piora da cianose (coloração arroxeada) são outros indicativos, uma vez que apontam a possibilidade da crise de hipóxia (redução abrupta de fluxo de sangue aos pulmões).

Elas tendem a revelar esses sintomas em atividades de recreação ou esportivas. Nessas ocasiões, não conseguem acompanhar os colegas, com frequente falta de ar ou respiração ofegante, cansaços excessivos, tontura e dor no peito, desmaios e inchaço nas mãos, tornozelos ou pés.

Além disso, podem apresentar dificuldades de aprendizagem e demora em andar e falar. Adicionalmente, quadros respiratórios alterados com evolução para bronqueolite, broncopneumonia ou infecções pulmonares constantes e recorrentes são considerados indícios de problemas cardiológicos.

Outro sinal pode ainda ser detectado no acompanhamento pondero-estatural, com visível afastamento da linha da normalidade na curva de crescimento peso x estatura.

Alguns exemplos de cardiopatia congênita

A lista de cardiopatias congênitas é bem extensa. Crianças com síndrome de Down, por exemplo, precisam de atenção especial para os indícios de insuficiência cardíaca, uma vez que é frequente apresentarem uma cardiopatia simples, de comunicação interventricular ou interatrial e, principalmente, uma malformação conhecida como defeito do septo atrioventricular —causando grande fluxo de sangue aos pulmões com necessidade cirurgia até o sexto mês de vida.

O caso da filha do ator Juliano Cazarré, como vimos, é da anomalia de Ebstein, forma rara de cardiopatia congênita em que a válvula do lado direito do coração (a válvula tricúspide, que separa o átrio direito do ventrículo direito) não se desenvolve adequadamente. Isso significa que o sangue pode fluir de forma errada dentro do coração, e o ventrículo direito ser menor e menos eficaz do que o normal.

Causas e prevenção

Segundo estudos, a maioria dos defeitos cardíacos congênitos resulta de questões originadas no desenvolvimento do coração e tem causa desconhecida. Dados revelam que mais de 90% das malformações cardíacas ocorrem em fetos sem qualquer indicador de risco. Entretanto, as pesquisas apontam que certos fatores ambientais e genéticos têm papel importante.

Sendo assim, não há maneira de prevenir, porém, algumas mudanças comportamentais contribuem para o bom desenvolvimento do bebê, especialmente em caso de gravidez planejada.

O uso de medicamentos sem o conhecimento médico, álcool, cigarro e outras drogas, doenças maternas, entre elas o diabetes, rubéola, toxoplasmose e outras infecções durante o período gestacional, podem interferir na formação do coração, assim como a idade da mãe —muito jovem ou com mais de 40 anos.

Aqui vale destacar a herança genética e o histórico familiar: quem tem pais, avós, tios ou irmãos que passaram por algum problema cardíaco têm mais probabilidade de apresentar anomalias no órgão —pais portadores de cardiopatias congênitas têm duas vezes mais chances de gerar um bebê cardiopata.

Ademais, algumas doenças são geneticamente transmitidas, mesmo que não exista nenhum fator de risco associado ou falta de cuidado com a saúde, a exemplo da cardiomiopatia hipertrófica familiar. O fato é que toda mulher que deseja engravidar ou que descobriu uma gravidez precisa saber como estão suas condições de saúde e realizar o acompanhamento adequado durante toda a gestação. Hoje ainda ocorre com frequência o nascimento de bebês sem o diagnóstico pré-natal de cardiopatia congênita.

Uma jornada cheia de desafios

A história de Juliano é, infelizmente, semelhante à de muitos outros pais. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cerca de 130 milhões de crianças em todo o mundo têm alguma cardiopatia congênita.

No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, a estimativa é que todos os anos aproximadamente 30 mil crianças cheguem ao mundo com algum problema assim no coração —sendo a terceira maior causa de morte antes do 30º dia de vida.

E mais um ponto preocupa: nem todos os bebês recebem a atenção devida. Metade dos recém-nascidos que precisariam de uma cirurgia para correção ficam sem atendimento no país, conforme dados da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo).

Porém, como vimos, quanto antes as cardiopatias congênitas são diagnosticadas e tratadas, especialmente no período fetal ou neonatal, maior a probabilidade de que essa criança ou adolescente tenha vida normal, com qualidade e sem consequências mais sérias pela descoberta tardia do problema.