Opinião

Viver apesar da dor: o que aprendi ao sentir dores no corpo todos os dias

Em algum momento da nossa vida, nos é ensinado que temos o poder de decidir o rumo da nossa história. Idealizamos o nosso futuro, nossa profissão, nossos relacionamentos, fazemos planos, traçamos metas. Às vezes, passamos meses ou anos perseguindo algum objetivo e, sem aviso, somos atropelados pelo acaso. Por que a vida é feita de muitas escolhas, mas também (ou principalmente?) do inesperado.

Esses eventos que acontecem contra a nossa vontade podem ser coisas simples, como um plano cancelado, ou algo que abala a imagem que temos de nós mesmos, como um emprego perdido ou o término de uma relação. Mas existem também o que podemos chamar de grandes acontecimentos —aqueles pontos de virada em que conseguimos enxergar um antes e um depois.

O meu grande acontecimento ocorreu em meio a uma pandemia, quando comecei a sentir dores o tempo inteiro (contei mais sobre isso na primeira coluna aqui em VivaBem).

A dor crônica me fez atravessar os piores momentos da minha vida e continua a me desafiar todos os dias, mas, ao mesmo tempo, provocou uma metamorfose em mim

Claro que isso não aconteceu de uma hora para outra, mas ao longo de muitos anos. E essas são algumas das coisas que aprendi e tenho tentado, aos poucos, colocar em prática:

Abrir mão do controle e não fazer tantos planos

Desde que iniciei nesse processo, passei a viver sob uma nova realidade, em que o controle escapava das minhas mãos. Acho que a primeira mudança com que precisei lidar foi a impossibilidade de fazer muitos planos. Eu sempre fui uma pessoa extremamente organizada e pontual, que gosta de fazer as coisas com antecedência. Eu curtia o processo de fazer o roteiro detalhado de uma viagem tanto quanto gostava de viajar.

Isso sempre me deixou extremamente ansiosa, com medo de que algo saísse do planejamento. Mas, quando você não sabe se vai acordar disposta a se levantar, fica muito difícil se comprometer. É horrível cancelar planos, marcar as coisas em cima da hora e não conseguir pensar a longo prazo, mas é também libertador se deixar levar pelas surpresas que podem aparecer pelo caminho.

Estabelecer limites e dizer não

É estranho pensar nisso, mas sinto que as pessoas passaram a me respeitar muito mais depois que desenvolvi dor crônica. Sabe quando você quer muito ir embora de uma festa e começam a insistir para você ficar, e aí você precisa se explicar como se apenas a sua vontade não fosse suficiente?

Continua após a publicidade

Isso nunca mais aconteceu comigo, não preciso inventar desculpas, e vou embora não apenas por sentir dor, mas pelo respeito que tenho pelo meu corpo, meus sentimentos e meus desejos verdadeiros.

Eu não tenho mais vergonha de dizer que não quero ir, não quero fazer, que não me sinto bem em alguma situação. E acho que isso deveria valer para todas as pessoas, independentemente do seu estado de saúde.

Imagem
Imagem: Larissa Teixeira/Arquivo Pessoal

Parar de reprimir emoções e fugir do sofrimento

Outro ensinamento que minha condição crônica me trouxe foi perceber que não é possível fugir da dor e do sofrimento, porque eles fazem parte da vida. Eu achava que, anulando minhas emoções, conseguiria viver sem sofrer. Achava que alguns sentimentos eram grandes demais e que eu não suportaria senti-los.

Continua após a publicidade

Agora, entendo que reprimir o que sinto faz com que as dores fiquem ainda piores, e que tentar fugir dela é como correr na esteira esperando chegar em algum lugar

Aceitar a dor não significa que me resignei com o meu destino, mas que entendi que nem tudo está nas minhas mãos, que eu não decido se e quando vou sofrer e que talvez as respostas não sejam exatamente aquelas pelas quais eu esperava. Isso não significa que estou em paz com a minha doença, muito menos que não tenho mais crises de raiva, tristeza e ansiedade, mas entender que não sou única responsável por melhorar tem feito com que eu pare de ser tão cruel comigo mesma.

Viver apesar da dor

Quando você para de se debater contra a realidade das coisas e de se cobrar tanto, consegue vislumbrar a possibilidade de viver apesar da dor. Durante muito tempo, meu único objetivo de vida foi eliminá-la, fazer com que sumisse de uma hora para outra. Mas isso seria como tentar superar o término de um relacionamento da noite pro dia, ou apagar um sentimento desagradável com a tecla delete.

Por muito tempo, acreditei na ideia de que eu só poderia aproveitar a vida e fazer as coisas que eu quero quando a dor passasse, como se estivesse vivendo em stand-by. Acho que essa esperança de dias melhores é um sentimento universal, mas que muitas vezes pode roubar o nosso presente. É exaustivo sobreviver esperando por um futuro que não chega nunca, e desejar que a dor desapareça não faz com que ela vá embora.

Muitas vezes me pego observando as outras pessoas com inveja (como se elas não sofressem também), fantasiando com a monotonia de uma vida sem dor e todas as possibilidades que vem junto com ela. Mas eu também estou viva e não quero mais que a minha doença me defina, não quero mais enxergar o meu próprio corpo como um inimigo, e não quero deixar a dor anular todos os meus desejos e sonhos.

Continua após a publicidade

Aceitar as mudanças e reconhecer minha evolução

Imagem
Imagem: Larissa Teixeira/Arquivo Pessoal

Li esses dias uma dessas filosofias em banheiro de bar que dizia: "chega um dia em que não somos mais o que éramos. Antes do dia em que não somos mais o que éramos, aconteceram dias e dias em que já não éramos mais o que achávamos que éramos" (o texto é do André Gravatá).

Eu detesto o papinho de que tudo tem um propósito e que a gente precisa sofrer pra aprender alguma coisa, mas às vezes tenho a sensação de que a dor veio para me fazer parar e olhar pra mim, me aprofundar em tudo que me faz ser quem eu sou e talvez, pela primeira vez, me fazer soltas as rédeas e suavizar minha rigidez.

Não me tornei uma pessoa evoluída, mas sinto que me conheço bem o suficiente para tomar minhas próprias decisões. São bonitos os momentos em que nos damos conta de quanto mudamos e evoluímos. Eu tenho percebido cada vez mais, nas pequenas coisinhas do dia a dia, o quanto meu comportamento mudou, como já não tenho as mesmas opiniões sobre tudo, como dou valor para coisas diferentes e o quanto aprendi nesse processo tão dolorido e avassalador.

Continua após a publicidade

* Larissa Agostinho Teixeira (@dadoreoutrosdemonios) é jornalista formada pela USP com mais de 10 anos de experiência como repórter, redatora e editora de vídeos e documentários. Escreve sobre dor crônica em VivaBem e produz conteúdo para o Canal UOL.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.