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Nuno Cobra Jr

O ódio ao treinamento físico tem cura?

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

22/07/2020 04h00

Afinal, por que tantas pessoas afirmam odiar a atividade física? Esse é um fenômeno moderno? Quais as suas origens? Em minha pesquisa, descobri que os principais motivos dessa aversão extrema são culturais, alimentados e estimulados pela mentalidade vigente e pelo mercado do treinamento, por mais paradoxal que isso possa parecer.

Vamos por partes, para falar sobre treinamento inclusivo e aversão à atividade física, realizei uma experimentação pública em frente a duas unidades da Livraria da Vila, em São Paulo. Essa experiência virou uma reportagem para a TV Cultura e está documentada na página do meu site Movimento Treinamento Consciente. Resumindo a proposta, quem passava por ali era convidado a fixar, por todo corpo, diversos sacos de areia, aumentando seu peso corporal em 30 kg. Em seguida, essa pessoa era convidada a se movimentar ou realizar uma leve corrida, vivenciando, na própria pele, subitamente, qual a dificuldade de movimentação e o sofrimento físico acarretado por essa condição.

Uma leve corrida, a 7 km/h, equivale a uma carga de 7 a 8 vezes o peso corporal agindo sobre a articulação do joelho, ou seja, uma pessoa que tenha 100 kg causará um impacto de 700 kg a 800 kg ao joelho, obviamente apenas essa variável pode tornar extremamente desconfortável e negativa a adesão a modelos de treinamento exaustivos, de alta intensidade. Sem contar o enorme desconforto cardíaco, além de um estresse físico intenso, aumentando os radicais livres e o cortisol, entre outros fatores.

Fico chocado ao ver na TV programas de perda de peso buscando acelerar os resultados, mesmo que a custa de expor o aluno a uma espécie de tortura física e psicológica. Forçar alguém que esteja acima do peso a fazer atividade de alta intensidade é de uma incoerência fisiológica brutal. No entanto, essa é a moda mais dominante do treinamento físico atualmente. Na medida em que as modas do treinamento se radicalizam, aumenta também a aversão ao exercício, estreitando o funil da adesão. Na realidade, só existe uma atividade física que funciona: aquela que você consegue aderir com regularidade.

ONDE NASCE ESSE TRAUMA?

O primeiro contato da criança com a atividade física deveria ser feito com toda atenção e cuidado, principalmente no caso daqueles que estão acima do peso, já que a experiência poderá ficar marcada —negativamente — para o resto da vida. E isso continua valendo depois para qualquer idade. Quando vão para o clube, para a academia ou quando participam de grupos de corrida, entre outros lugares, os que estão acima do peso não encontrarão uma atividade física que seja realmente pensada para eles. São eles que têm que se adaptar às formas de treinamento recomendadas, não o contrário. Muitos acabam tentando seguir o que todos fazem, as recomendações das revistas ou as atividades da moda, à custa de um grande sofrimento e inadequação.

Não podemos mais ignorar as pessoas que estão obesas ou com sobrepeso. No Brasil, atualmente, isso equivale a 52,9% da população. O excesso de peso estimula um círculo vicioso complexo, quanto mais pesado, mais aumenta a aversão à atividade física, e, dessa forma, quanto menos atividade, mais aceleramos o ganho de peso. No entanto, a aversão ao treinamento não depende apenas do ganho do peso, ela pode ser transmitida geneticamente, ensinada por nossos pais ou influenciada por nosso meio cultural. Ou seja, gostar ou não de atividade física é, em grande parte, um aprendizado. Sendo assim, caso essa experiência seja inclusiva, agradável e prazerosa, as chances de alterarmos esse cenário aumentam exponencialmente, podendo, em longo prazo, converter o círculo vicioso em um círculo virtuoso. Quanto mais pessoas gostarem e conseguirem aderir à atividade física, mais as novas gerações irão aprender a gostar do movimento corporal, se beneficiando dessa onda positiva.

SÓ O FITNESS SALVA!

Por que a 'indústria do corpo perfeito", como chamo, tem grande responsabilidade no fenômeno moderno do ódio ao treinamento?
Em muitos casos, o ódio ao treinamento é um efeito colateral da linha de conduta adotada por essa indústria. Antes da popularização do treinamento, na década de 1980, esse fenômeno praticamente não existia, as pessoas podiam fugir ou não se importar com a atividade física, mas odiá-la é um estímulo novo, uma consequência das exigências relacionadas aos modelos de beleza e às modas do treinamento. Como funciona esse mecanismo?

Primeiro, é importante explicar que as modas do treinamento são escolhidas a dedo, quanto mais apelativas e radicais, mais irão vender. Em segundo lugar, é importante realçar que o marketing dessa indústria associou o corpo perfeito à busca da felicidade, ou seja, de forma subliminar, ela te convence que você só será feliz quando atingir essa meta de perfeição. Detalhe: esse ideal é inatingível, já que a perfeição não existe.

Até aqui, sem novidade, o marketing conseguiu te manipular e te fidelizar, sem que você tenha consciência disso, uma estratégia perfeita e irretocável de neuromarketing. Não feliz com isso, o marketing propagou o mito hegemônico do "treinamento com sofrimento", o "sem dor, sem ganho", uma estratégia de reserva de mercado, te convencendo de que apenas o seu modelo de treinamento traz bons resultados. Essa é uma estratégia antiga, assim como a igreja evangélica afirma que só Jesus salva, a indústria do fitness afirma que só o treinamento radical e a musculação pesada conduzem ao corpo perfeito.

Pronto, agora, seguindo a manada e as novas exigências sociais, todos são obrigados a se adequar a esse modelo do fitness e se inscrever em uma academia. Afinal, esse investimento pesado tem que ser monetizado, quase todo o investimento gasto com marketing e propaganda da área do treinamento está associado ao lobby do fitness.

E aqui nasce o ódio radical ao treinamento, uma vez que mais de 90% da população irá passar por um grande sofrimento, tendo enorme dificuldade para aderir a esse modelo, essa conta inclui os sedentários, obesos, alunos com sobrepeso, de meia-idade, alunos sem regularidade ou sem adaptação a esse modelo radical. Sim, é isso mesmo o que você entendeu, devido as suas escolhas, a indústria do treinamento tem excluído mais de 90% da população, defendendo formas de treinamento radicais e expulsivas. Como podemos perceber, a fidelidade à linha extrema do bodybuilding, o culto ao fortalecimento muscular e à musculação pesada, tem custado muito caro à indústria do treinamento. Chegou a hora de dar ouvido aos grandes mestres da consciência corporal e aos moderados. É um mito achar que o treinamento consciente não é comercial, como bem demonstra a "febre" do Pilates.

O ódio é um sentimento forte, que demanda tempo para ser cultivado, ele é provocado quando o aluno se vê abrigado a fazer algo a contragosto, ou seja, exercícios que lhe causam um enorme sofrimento, e então, ele insiste novamente, e mais uma vez, e outra, revivendo, periodicamente, essa frustração e "tortura" sem fim. Obviamente, com o tempo, esse ódio irá se fortalecer dentro do seu coração.

No treinamento, tudo se resume a escolher uma atividade que combine com o seu perfil, alguns adoram o treinamento de alta intensidade, outros não irão se adaptar a formas de treinamento exaustivas e intensas, por mais que insistam. Existe gosto para tudo!

O MITO PREJUDICA O RITO

Agora, vou contar algo incrível e inacreditável, há pelo menos 15 anos, de forma majoritária, os maiores estudiosos e especialistas do conhecimento corporal, como doutores em educação física, fisiologistas, ortopedistas, fisioterapeutas e cardiologistas, entre outros, se posicionam contra o modelo do "sem dor, sem ganho", não recomendando que a população siga essa estratégia. Para aumentar esse mistério, os maiores treinadores de atletas do mundo também discordam desse modelo, defendendo a moderação e o equilíbrio como um princípio fundamental do treinamento, pensando na moderação como a medida exata, sem exagero, assim como está escrito no dicionário. Para entender melhor, leia O mito do treinamento com sofrimento, que publiquei aqui em minha coluna no VivaBem.

Meu pai, Nuno Cobra, combate esse mito há 65 anos e eu estou nessa estrada há 36 anos. Foram necessárias duas gerações, décadas de experiência prática e estudo desenvolvendo uma abordagem didática, sistêmica e inovadora, para, enfim, desconstruir esse mito de forma profunda. Mesmo que sejamos reconhecidos como uma das maiores referências do treinamento físico e mental no Brasil, treinando grandes campeões como Ayrton Senna, ou o atual campeão mundial de surf, Ítalo Ferreira, além de diversos campeões mundiais, treinando atletas campeões em mais de dez diferentes modalidades esportivas, entre tantos outros, não temos tido sucesso em alterar essa mentalidade. Na verdade, nas últimas décadas o problema só aumentou.

A questão é complexa, o que consumimos aqui vem da matriz, os EUA, ou seja, enquanto a diretriz não se alterar por lá, nada muda por aqui.

Caramba! Será que o reconhecimento à nossa pesquisa será póstumo? Será que esse é o preço a ser pago por quem inova e se coloca contra as crenças dominantes?

Essa dificuldade tem uma explicação. No mês passado, veio a público um estudo esclarecedor, desvendando os mecanismos neurais que permitem que esses mitos se cristalizem em nosso cérebro, tornando praticamente impossível mudar a opinião alheia, a partir do ponto em que ela esteja bem estabelecida. Segue o que diz Max Rollwage, psicólogo e neurocientista, autor da pesquisa:

"Até o nosso estudo, uma das hipóteses era que as pessoas recebiam informações conflitantes, mas poderiam escolher desprezá-las. Com a avaliação dos mecanismos neurais, mostramos que, em determinado ponto de confiança sobre uma crença, o cérebro simplesmente não processa as novas informações. "

O modelo de treinamento atual encontra-se em uma encruzilhada, chegamos ao esgotamento. Há muitos anos escuto, frequentemente, de amigos e alunos, as mesmas reclamações, que resumo na lista a seguir:

  1. Eu não me adapto à academia.
  2. Eu odeio academia.
  3. Fazer musculação é muito chato.
  4. Ninguém aguenta mais este modelo de treinamento da academia, eu queria fazer algo diferente.

Para o bem da própria indústria, proponho que ela faça uma pesquisa profunda para averiguar qual a porcentagem da população que concorda com as afirmações descritas anteriormente. Isso talvez os ajude a repensar os modelos dominantes. O que vai acontecer com esse mercado agora que as pessoas perceberam que não precisam de uma academia para treinar com qualidade?