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Nuno Cobra Jr

A busca pelo corpo perfeito pode se tornar uma doença

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

08/07/2020 04h00

"O nosso negócio é fazer as mulheres infelizes com o que têm", esta frase foi dita em 1953, pelo então presidente de uma das maiores redes de cosméticos nos Estados unidos.

Hoje, a indústria da beleza corporal movimenta centenas de bilhões de dólares anualmente, fazendo com que essa confissão seja mais verdadeira do que nunca, onipresente em todos os meios de comunicação por meio de um marketing cada vez mais sofisticado e sedutor.

Durante 12 anos, desde 2004, realizei uma pesquisa profunda e transdisciplinar buscando entender como e por que a "indústria do corpo perfeito", como chamo, tornou-se uma grave questão de saúde pública.

O que se revelou nesse estudo foi surpreendente, abaixo da ponta aparente desse "iceberg", surgem depoimentos como este logo abaixo da Roberta, 28 anos, instrutora de musculação (ao livro "Nu e Vestido, dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca"), detalhando um dos efeitos colaterais da indústria fitness, a vigorexia —transtorno psíquico que atingi milhões de pessoas em todo o mundo:

"Eu estava muito grande, igual a um homem, tomando bomba direto... Usava hormônios todos os dias e malhava feito louca, no mínimo, três horas por dia de domingo a domingo. Me enchia de clara de ovo, consumia 280 por semana, quarenta por dia.

Um dia, percebi meu estado. Estava enlouquecendo, só queria malhar, malhar e malhar, não me preocupava mais com nada a não ser crescer e ficar cada vez maior e mais definida. Só pensava no meu corpo.

Nenhum cara queria nada comigo, e eu não sou lésbica. Todos me olhavam, porque eu chamava a atenção, mas era porque eu estava estranha, parecendo macho. A gota d'água foi quando entrei no banheiro de um shopping e as garotas que estavam lá dentro disseram que ali não era banheiro de homem. Acabaram chamando o segurança. Ele veio e disse que era 'um absurdo travesti no shopping, ainda mais querendo ir ao banheiro'. Depois disso, entrei em depressão, já estava percebendo que alguma coisa não estava certa nessa história. Comecei a fazer terapia, análise, a me cuidar, a tentar me organizar, meu corpo estava totalmente doido.

Não menstruava, sentia enjoo, não dormia, tive que tomar hormônio, só que, agora, feminino. Quase morri, porque me dei conta de como estava estranha. Só conseguia me relacionar com algumas pessoas da academia, meu mundo se resumia a essas paredes, mais nada."

ISSO É SAÚDE?

Analisando anúncios veiculados pelas maiores marcas esportivas globais, pude constatar que a estratégia usada é muito parecida. Basicamente, o que vemos são modelos profissionais exibindo corpos extremamente musculosos e definidos, realizando exercícios extremos e radicais.

O que se vende é uma glamorização do sofrimento e do radicalismo no treinamento. Ao final desse "conto de fadas", aparecem slogans estimulando o aluno a superar seus limites e, assim, conquistar o corpo dos seus sonhos.

O "shape" se transformou em um bem de consumo, uma "roupa" que usamos como forma de aumentar o poder de sedução e o status social. O corpo "ideal" é como uma Ferrari, só é realidade para uma pequena elite. Para essa minoria, o treinamento transforma-se em uma forma de sacerdócio, envolvendo métricas rígidas de dieta, combinada a rotinas de exercícios extremos e suplementações excessivas. Quando treinar torna-se um processo compulsivo e obsessivo, cria-se um paradoxo: quanto mais o indivíduo busca se adequar aos modelos de beleza vigentes, mais inadequado ele se sente.

A estratégia do consumo é acenar e seduzir com o inatingível. Como, provavelmente, você nunca irá atingir esses ideais de perfeição, você continuará consumindo seus produtos, eternamente. O treinamento físico segue esse mesmo princípio. Ao analisar a condição física de mais de 90% da população, vemos uma realidade bem diversa daquela que é exposta nos comerciais e programas de maior audiência na TV.

A glamorização de corpos "bombados" na TV é um estímulo ao uso de anabolizantes e à vigorexia. Só no EUA, três milhões de pessoas consomem anabolizantes com finalidades estéticas. Caso este número seja multiplicado pela quantidade de usuários nos vinte países mais desenvolvidos, chegaremos a números assustadores.

Assim como na anorexia, em que o indivíduo nunca se reconhece magro o suficiente, no caso da vigorexia ele nunca se reconhece forte e musculoso o suficiente. E dá-lhe "bomba". Este perfil de aluno torna-se dependente de doses diárias e semanais de anabolizantes, caso contrário, o corpo "murchará" e, dessa forma, se tornará flácido, o que sobra será um excesso de gordura corporal, resultante desse processo artificial.

Além de sobrecarregar os rins, coração e outros órgãos, a vigorexia e hábitos que podem ser adotados por causa do transtorno (uso de anabolizantes, excesso de treino e restrições alimentares) causam diversos problemas ósseos e articulares, encurtamento dos músculos e tendões, riscos de infarto, depressão, derrame, impotência, diminuição dos testículos e uma grande propensão a diversos tipos de câncer, entre outros. Agora eu pergunto, isso é saúde?

A OBSESSÃO COM A PRÓPRIA IMAGEM CORPORAL

O que torna extremamente difícil o tratamento da vigorexia é o fato de o paciente relutar em reconhecer esse transtorno de autoimagem, que pode se apresentar em diferentes níveis de intensidade. Um dos maiores indicativos da vigorexia é o processo compulsivo de se olhar no espelho, assim como o tempo excessivo dedicado ao treino e a obsessão com o fortalecimento muscular.

Christian Dunker, professor do departamento de psicologia clínica da USP (Universidade de São Paulo), explica que há casos em que, tal qual um vício em drogas, o exercício físico se torna a razão e o porquê da vida. Neste contexto, pessoas são capazes de deixar tudo de lado, família e amigos, para se dedicar a esta ilusão do corpo perfeito. "Cria-se uma dependência por esta forma de vida que acompanha a rotina exagerada de exercícios, com métricas de resultados, avaliações e competição, diz o psicanalista.

A malhação compulsiva é uma droga muito perigosa. Ela é muito estimulante e gratificante. Os músculos vão crescendo e você começa a se sentir mais poderoso, mais bonito, seguro de si e desejado. Quando os alunos percebem que o limite natural do crescimento muscular e do treinamento não vai lhes trazer aquele corpo e volume muscular tão sonhados e estimulados nas academias, eles, fatalmente, poderão apelar para o uso de anabolizantes. Ninguém fala muito sobre isso, mas o tráfico de anabolizantes nas academias tornou-se uma grave questão.

ROLETA RUSSA

Não há limites seguros para o uso de anabolizantes, eles efetivamente podem custar sua vida. Todo "marombeiro" gosta de afirmar que, sabendo tomar, não há riscos. Não se engane, ficar muito forte em poucos meses é sedutor, mas se expor a este risco extremo é uma insanidade.

Tomar anabolizante é uma roleta russa, é impossível prever quais serão os efeitos colaterais para cada pessoa, especificamente. Tem fisiculturista que já toma há 10 anos e não tem (ainda) grandes alterações, como também há pessoas que tomam apenas poucas doses e sofrem graves complicações de saúde que podem levar à morte, como alguns casos recentes.

A estratégia de criminalizar o seu uso se mostra uma péssima estratégia, em diversos sentidos. Além de fomentar um mercado negro e dificultar o controle de qualidade do produto que está sendo usado, em larga escala, este processo inviabilizou igualmente pesquisas mais concretas sobre o assunto. Como o tema virou tabu, virou um crime, há muitas décadas não existem condições para a pesquisa científica. Essa foi a deixa para o crescimento dos argumentos favoráveis ao seu uso, defendendo que não existem provas efetivas contra os anabolizantes. Assistimos, então, a uma explosão e banalização do seu consumo nas últimas décadas. A situação atual é gravíssima.

A que ponto chegamos: o ambiente supostamente saudável da academia pode representar um risco à saúde. Hoje, recomenda-se que pais realizem exames antidoping regulares em jovens que frequentam a academia, caso observem um crescimento muscular muito acelerado. Esse temor de expor os filhos aos riscos da vigorexia já faz alguns pais proibirem seus filhos de "malhar".

As academias deveriam atuar seriamente, pensando em como reduzir e combater o uso de anabolizantes entre seus alunos, com ações e campanhas mais consistentes. Afinal, elas são atingidas pelos impactos negativos da vigorexia. Este processo passa, prioritariamente, por construir uma nova cultura e mentalidade dentro do universo do fitness.

A indústria do treinamento precisa retomar o seu propósito, abandonar o foco imenso nas questões estéticas, dando uma guinada de 180 graus em seu marketing, passando assim, a priorizar, a saúde, a moderação e o equilíbrio no treinamento físico.