Piscar para lembrar que somos gente: um lembrete gentil da vida acelerada

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Há alguns anos, em sala de aula, uma aluna querida me contou que uma colega de trabalho tinha no seu computador do escritório um destes papéis adesivos coloridos com uma palavra escrita: "piscar".
Aquele lembrete teria sido recomendação médica: a colega estava com a síndrome do olho seco e uma médica teria a orientado a piscar mais vezes ao longo do dia, de forma consciente.
O piscar de olhos é involuntário. Um movimento que fazemos muitas vezes por dia sem colocar nenhuma intenção (o normal seria piscarmos de 15 a 20 vezes por minuto). Por isso, a médica teria diagnosticado que o problema da paciente estaria relacionado ao uso excessivo de telas e indicado que prestasse mais atenção e encontrasse recursos que a lembrassem de que precisava piscar de forma mais recorrente, para reidratar os olhos.
Confesso que este relato me deixou muito angustiada e na época fui pesquisar sobre isso, porque fiquei absolutamente passada com o fato de uma pessoa ter que colocar um lembrete para piscar.
Mas agora, olhando a contrapelo, isso me lembrou o depoimento de uma parceira do Instituto Desacelera, que me contou que percebeu que havia chegado no limite na sua relação com o trabalho, quando percebeu que parou de beber água, para não "perder tanto tempo" indo fazer xixi.
São distorções do mundo acelerado que vamos normalizando. Até a hora em que cai alguma ficha. E ela normalmente é nosso corpo nos lembrando que somos gente.
Minha reflexão aqui é concreta (a Sociedade Brasileira de Oftalmologia estima que 13% dos brasileiros têm a síndrome do olho seco), mas também simbólica, quando estas questões podem ser entendidas como sintomas de um corpo que vem sendo cada dia mais treinado para ser máquina.
Do ponto de vista do sintoma "concreto", é evidente que outros fatores contribuem para a síndrome do olho seco (a SBO lista clima, excesso de ar condicionado, estilo de vida e alimentação, entre outros). E um destes fatores é o tempo de exposição às telas.
O aumento de casos da síndrome nos últimos anos vem sendo investigado pelas entidades do setor e por pesquisadores da área de forma associada ao fenômeno da superexposição aos dispositivos digitais. A agenda foi tema da Campanha Julho Turquesa, incentivada pela Sociedade Brasileira de Oftalmologia.
Segundo a SBO, estima-se que 90% das pessoas que passam mais de três horas por dia diante de telas têm algum sintoma de prejuízo da qualidade visual.
A questão relacionada especificamente ao excesso de telas foi estudada por um pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e recebeu o nome de síndrome da visão computacional, cujos sintomas são olho seco, dor de cabeça e visão turva.
Do ponto de vista mais reflexivo, da questão que isso representa, o papelzinho colado no computador da colega da minha aluna é também um lembrete de que vivemos na economia da atenção, em que empresas bilionárias de tecnologia e mídia disputam a qualquer custo a atenção humana em um mundo de hipercomunicação e excessos.
E de que, neste mundo, se quisermos nos esquivar de sintomas que se manifestam no nosso corpo, maquinizando-o, precisamos estar muito atentos e acordados.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (que cito recorrentemente aqui, por ser uma das minhas referências bibliográficas de pesquisa) escreveu um livro chamado "Favor fechar os olhos". A obra é um brevíssimo ensaio, em que Han afirma que o inquietante na experiência do tempo atual é a "conclusão faltante", ou seja, a falta do ritmo e do compasso das coisas.
A atenção permanente às imagens inquietas não é atenção, senão, seu oposto. Atenção é o que dedicamos ao outro (ser humano) quando estamos disponíveis. Na economia da atenção, nossa atenção é mecanizada e —dedicada às telas— sequestrada; e entra em colapso.
Cada vez mais atentos às telas, temos condições cada menos reais de nos dedicarmos genuinamente ao outro. Estamos mais impacientes, menos disponíveis e mais irritados com as outras pessoas. Incapazes de doar atenção. Para pessoas. Porque estamos doando esta atenção para máquinas. Han, no livro que mencionei acima e inspirou essa coluna, diz: "A política temporal do neoliberalismo desfaz o tempo do outro, pois ele não é eficiente".
Pisquemos. Para hidratar os olhos. E para nutrir a vida.





























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