Tempo de ser, não de ter: que tal celebrar o Dia das Crianças sem consumir?

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Eu lembro como se fosse hoje o quanto fiquei assustada ao ver o flyer de uma escola de educação infantil com uma imagem da USP quando buscava berçário para meu filho mais velho, Miguel.
O material sugeria (sutilmente?) que os bebês que frequentam aquele espaço um dia chegariam àquela universidade; e talvez sugerisse também que ali, os bebês encontrariam seus pares para, desde cedo, fazer networking. Um escândalo, mas acreditem: não é algo incomum.
O mundo acelerado atropela tudo. E atropela o tempo das infâncias. Na verdade, atropela até o tempo do gestar e do nascer. Antecipa.
Ocupa de coisas da vida adulta e da cultura da produtividade tóxica, das telas e do consumo um tempo que seria apenas para ser e estar no mundo, desfrutar, encantar-se. Em vez de aprender com a infância como deveríamos ser, estamos tentando adultizar as crianças, ensinando-as desde cedo que o importante é ter.
Dentro do universo da aceleração, esta é uma das coisas que fico mais triste de testemunhar. E por isso sou tão fã de projetos e iniciativas que afirmam as infâncias como tempo de brincar e buscam construir espaços, tempos e políticas de preservação e priorização da infância (neste texto, mencionei algumas delas, como o movimento slow kids, a iniciativa infância sem excesso e o Instituto Alana).
Para celebrar o dia de hoje, conversei com Elisa Lunardi, idealizadora da iniciativa Infância sem Excesso. Ouvir Elisa é um privilégio da vida. Ela sempre "buga" meu pensar com uma pergunta que inverte a ordem das coisas, que me faz refletir por um caminho diferente, que faz brotar uma ideia nova. Juntas, temos feito coisas bonitas para pensar o desacelerar das infâncias e as relações entre infâncias, educação, consumos e aceleração.
Ela me ajudou a entender que a saída é pelo menos. E nesta conversa, ela me contou como surgiu a ideia do "Só um?", livro que acaba de lançar em parceria com Rayssa Oliveira pela editora Grua. "Há força no um, no corpo que vive, nas histórias raízes. É preciso acender os sentidos, retomar o simples, relembrar o que mora dentro", afirma Elisa.
Também falamos sobre como podemos viver um dia das crianças longe dos excessos, das telas e dos consumos. Ela dá dicas preciosas sobre a data e sobre como construí-la todos os dias, mobilizando repertórios não consumistas. Reproduzo nossa conversa a seguir.
De onde veio a ideia do "só um"?
A ideia do livro começou faz tempo. Veio relacionada à ideia que ficou forte na pandemia, de que "uma vida importa". Isso ficou como uma semente miudinha e comecei a pensar na sala de aula com as crianças na importância do um em relação aos excessos. Comecei a propor uma atividade que usava um material só, para exercitar a unidade: um material em cima da mesa e criávamos em cima disso. Isso se desdobrou para outras atividades e ateliês.
Essa ideia do um se fortaleceu depois que fiz uma pós-graduação chamada "a natureza que somos" e fiquei vinculada à ideia de unidade de nós com a natureza. A natureza somos todos. Fiquei com pensamento forte de que somo um planeta só: não existe rota de fuga. A partir disso e de uma história bonitinha da infância, nasceu o só um. Meu irmão me falou que quando ele encontrava com minha vó, ela desenrolava uma balinha de menta do pacote e dava para ele. Ele colocava na boca e não tinha diálogo, não se falava nada sobre aquilo. Era um ato silencioso e cúmplice entre os dois, de celebração do encontro.
A partir disso tudo a ideia de tratar o menos como muito veio com força.
Em uma noite bonita de lua, precisei colocar no papel essa ideia. Me pergunto em que momentos conseguimos ser únicos de presença? Quando conseguimos nos debruçar em instantes miudinhos mas que tem o todo? Foi dessa valorização do menos que veio a ideia de que o menos é muito e que talvez seja um dos caminhos de possibilidades de pensar em como os excessos se tornaram nossa forma de viver, de ser e nosso jeito que está absolutamente vinculado ao ter.
Por que precisamos construir uma infância sem excesso?
Esse é um movimento educativo que começou dentro de mim e sinto que hoje tem mais contorno e vida própria. Ele ainda é uma criança de 5 anos de vida, que nasceu na minha tentativa de encontrar caminhos possíveis de viver a partir do que acreditava e sentia que era importante tentando me descolar de padrões postos como forma de ser relacionadas especialmente à maternidade, às infâncias, aos convívios entre pares e famílias.
Tudo estava pautado em "tem que(s)" que a sociedade traz e especialmente que as telas nos impõem. A iniciativa nasceu da tentativa do ato de presentear com presença e afeto de forma que não seja através do consumismo, da compra e do presente com embrulho.
No início, com Tati Garrido e Ana Aguirre, falávamos do presente como ato de poder viver junto, mais relacionado à celebração do outro, algo que tivesse presente, que tivesse relação com o que vejo no outro. Falávamos de perguntar às crianças o que elas queriam dar para um amigo a partir do que tinham em casa. Ninguém melhor do que a criança para dar forma a um presente.
É fácil chegar em uma loja e falar "quero um presente para um menino de 7 anos e posso gastar tanto".
O ato de fazer e criar um presente demanda mais tempo e um debruçar sobre o feitio. A infância sem excesso vem como exercício diário incansável e ininterrupto de debruçar o olhar e jogar luz sobre excessos para que consigamos ver de fato o que precisa se manter frente a tudo isso e o que podemos eliminar, ressignificar, se desfazer ou fazer de outra forma.
Por que esta data comemorativa virou uma data meramente comercial e como podemos reverter isso?
Gosto muito de uma frase do Instituto Alana que afirma que "ninguém nasce consumista". Tudo que temos visto é construção. E diante de tanto consumismo, precisamos nos perguntar como podemos tentar fazer o dia das crianças mais significativo?
Precisamos mudar todo o nosso dia a dia; os outros 364 dias do ano. O Dia das Crianças vinculado à compra, ao presente e ao ter é uma produção de todos os outros dias. Seria preciso pensar excessos, que é pensar hábitos e comportamentos.
O que temos ofertado enquanto paisagem da infância? Que repertório de dia a dia entregamos às crianças? Que possibilidade de passeio? De vida, descanso, construção, alimentação, música? Como compomos tudo que vai integrando esse cotidiano destas crianças vai as formando em direção a algo. Se fazemos programas de gastar e de shopping, se as conversas são neste teor, sem dúvida isso fica mais forte neste dia: a questão de ter algo.
É importante pensar o que trazemos de perguntas, de palavras, de linguagens para elas. Se você pergunta o que quer de Dia das Crianças, está falando de coisas materiais. Podemos perguntar o que elas querem viver de Dia das Crianças. Isso desdobra outras respostas. É preciso toda outra rega durante todo ano se quisermos fazer pontes com outras formas de celebrar.
Você tem dicas do que fazer no Dia das Crianças, para celebrar sem consumir?
Gosto de trazer sempre o diálogo no sentido de pensar junto. Essa construção desse dia junto com a criança. Podemos perguntar o que a gente pode fazer para que seja um dia diferente, inusitado, que deixe marcas na memória, que faça sentido, que atravesse nossos corpos. Eu pergunto "o que você gostaria de viver?".
Outra coisa que gosto bastante é trazer nossos repertórios do que a gente vivia nesse dia. Como era esse dia quando eu era criança? Como era celebrado esse dia? Tinha essa relação tão forte com o consumismo? Isso está mais forte atualmente? O que seria um dia de celebrar a vida? Será que a vovó ou o vovô podem nos contar como era? Será que eles sabem algumas brincadeiras? Vamos chamar outras crianças e fazer um dia de brincadeiras?
Cada adulto pode trazer uma brincadeira de quando era pequeno. Vamos pensar uma comida que cada um possa fazer um pouco? Pode ser qualquer atividade que dialogue com a ideia de fazer um dia juntos: um fazer que passa pelas mãos e, ao passar pelas mãos, já faz outro sentido.
Aqui em casa, a gente gosta de não dar presente com embrulho. Caso este presente embrulhado seja um desejo que se mantém e que vem há muito tempo, há alternativas possíveis. Pode ser um presente coletivo que envolve toda a família e cada um participa de certa forma para que esse presente possa vir.
Fazer um dia em que a família como um todo arrume a casa, coloque a mesa fora e almoce de um jeito diferente, que se faça uma receita de família, que todos durmam juntos. O que podemos fazer que é incomum do dia a dia e pode ser divertido? Isso pode revelar a importância de celebrar com a presença de todos. Podemos deixar os celulares em uma caixinha e fazer um fim de semana sem telas, ler juntos boas histórias, literatura, fazer programas culturais, programas gratuitos.
E também podemos incentivar que eles recebam novos brinquedos ao doar antigos?
Isso. Faz bastante sentido pegar todos os brinquedos que tem em casa e colocar à mostra: colocar todos em uma mesa ou no chão para que as crianças tenham a percepção de com o que tem brincado de fato? Vale perguntar a eles de tudo que tem o que tem usado? O que está esquecido? Será que resgatar brinquedos do armário é uma possibilidade de viver este dia?
Pegar jogos que estão esquecidos e brincar disso ou fazer estes brinquedos circularem, doando para amigos ou pessoas da família, vizinhos. Vale perguntar quais brinquedos estão aqui e podem ir para uma feira do giro? Serem doados no grupo da escola? Vale também entender se o brinquedo que a criança está pedindo faz sentido mesmo. Será que vai ficar no armário? Podemos ver quem tem e brincar por uns dias e devolver? Seria como "alugar" um brinquedo. Ou construir formas mais coletivas de usá-los. Pensar em um uso mais coletivo e não em acumular. São formas de refletir sobre não ter que ter.
O livro carrega este espírito?
Sim. O um é. Quando falo do UM, falo de mim. Falo do instante, da presença precisa. Da percepção do agora. Do foco, do único, do silenciar. Da pausa e do tempo. Tempo de enlaçar e tecer com o outro. Tempo de infância, lembrança de infância. Tempo de ser e de estar em si. Do que é pequeno. E inevitavelmente, essencial. Sem excessos, sem atropelos. Sou UM.





























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