Michelle Prazeres

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Opinião

'Todo mundo tem as mesmas 24 horas': dizer isso é perpetuar violência

Quantas vezes você já ouviu por aí (ou até reproduziu) a sentença "todo mundo tem as mesmas 24 horas. Basta se organizar para dar conta"?

A noção de que todos(as) temos disponível o mesmo tempo costuma ser mobilizada para justificar ideais de produtividade e competição ou comparação entre as capacidades de realização e execução de tarefas em uma mesma unidade de tempo. Em geral, carrega consigo a certeza de que bastaria gerirmos melhor o nosso tempo para darmos conta de tudo.

Mas será que essa frase carrega, de fato, alguma verdade?

Em contextos desiguais como os que vivenciamos no Brasil, é preciso ponderar este pensamento se não quisermos reproduzir violências estruturais.

É fato que o relógio marca 24 horas para todas as pessoas. Mas você parou para pensar que esta forma de medir o tempo é uma tentativa de controlá-lo e de gerenciá-lo como se ele fosse um recurso?

Nós contamos o tempo deste modo, porque o tempo ocidental é um tempo colonizado em função da necessidade de servir à cultura da produtividade e do consumo.

Mas existem outras formas de experimentar o tempo. Para povos tradicionais, indígenas e africanos, por exemplo, o tempo pode ser cíclico, circular e espiralar; e não aponta somente para a frente, como uma flecha em direção ao progresso, como provoca o ambientalista e filósofo brasileiro Ailton Krenak.

Esta ideia de tempo entendido como recurso e portanto mensurável, gerenciável e controlável está a serviço de um determinado projeto de sociedade. E, ainda assim, vale a ponderação: o que acontece nessas 24 horas é radicalmente diferente, dependendo de onde se nasce, de quem se é, do trabalho que se realiza, das condições de vida, do acúmulo de responsabilidades, da presença (ou ausência) de uma rede de apoio e de uma série de desigualdades estruturais.

Vou dar um exemplo que costumo dar de forma bem caricata, para ilustrar este argumento. A mãe solo que precisa garantir o sustento da casa, o cuidado com os filhos e a administração da vida cotidiana não vive as mesmas 24 horas que um executivo com tempo para delegar tarefas e com suporte para atividades básicas.

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A pessoa periférica, que leva três horas por dia no transporte público, não dispõe do mesmo tempo que alguém que pode trabalhar remotamente, com conforto e autonomia; ou que vive a alguns minutos a pé do local onde trabalha.

Isso sem falar das diferenças concretas do ponto de vista da alocação temporal (a atividade de dedicar tempo a diferentes necessidades e obrigações), que impede algumas pessoas de desfrutar do tempo de descanso, por exemplo, como um direito.

Para deixar mais concreto: segundo o IBGE, em 2022, as mulheres dedicaram quase o dobro de tempo que os homens aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos.

Essas tarefas consumiram 21,3 horas semanais delas contra 11,7 horas deles. As mulheres pretas ou pardas gastaram 1,6 hora a mais por semana nessas tarefas do que as brancas.

Portanto, a ideia de que todo mundo tem as mesmas 24 horas escamoteia desigualdades e individualiza responsabilidades. Naturaliza a ideia de que basta "querer" ou "se organizar" para alcançar o sucesso de organizar seu próprio tempo, apagando os contextos de precariedade, racismo, desigualdade de gênero, capacitismo e tantos outros marcadores sociais que impactam diretamente a experiência do tempo.

Quando falamos, por exemplo, que basta alguém acordar mais cedo para meditar ou que basta a pessoa querer praticar o autocuidado que ela vai separar tempo e energia para isso, estamos reproduzindo a violenta ideia de que esta seria uma escolha.

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Para a maior parte das pessoas, não é. Por isso é preciso falar sobre justiça temporal: a ideia radical de que precisamos reparar as diferenças relacionadas a disparidades de experiências temporais entre as pessoas.

Nosso tempo não é neutro. Ele é atravessado por estruturas de poder e por uma lógica de aceleração que desconsidera os corpos e seus contextos sociais.

A crítica à ideia de tempo homogêneo é uma forma de resistência à cultura da hiperprodutividade. É um convite a um olhar mais cuidadoso e coletivo sobre o tempo.

A cronomeritocracia é a ideia meritocrática do tempo, como se fosse possível para todas as pessoas fazerem as mesmas escolhas de alocação do tempo, desconsiderando desigualdades sociais que marcam a experiência temporal de cada um(a).

E como cada pessoa pode contribuir para mudar isso? Aqui vão algumas dicas.

Reconhecendo que algumas escolhas de tempo são privilégios; e que nem todo mundo tem a mesma experiência temporal, tendo em vista que ela é atravessada por marcadores sociais de desigualdades;

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Questionando discursos fáceis, como "bastaria se organizar para dar conta" (quem são as pessoas "desorganizadas" que você conhece? Já parou para reparar?);

Buscando reverter a cultura da produtividade em espaços do seu entorno;

Valorizando o trabalho de cuidado sem romantizar nem invisibilizar quem cuida;

Defendendo políticas públicas que reparam desigualdades de tempo;

Adotando flexibilidades que mexem nas estruturas de tempo das relações de poder;

Democratizando o acesso ao descanso, ao bem-estar e à saúde mental;

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Conversando sobre o tempo e o ritmo e os prazos das coisas a partir de uma perspectiva de reparação de desigualdades temporais.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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