Michelle Prazeres

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Opinião

Descanso não é luxo, nem prêmio por desempenho. Descanso é direito

Como trabalho com este tema na vida, no meu ativismo e na minha pesquisa, é comum que amigos próximos me contem causos relacionados à questão da desaceleração. E sempre acho estas histórias maravilhosas, porque além de inspiradoras, elas me ajudam a trazer bons exemplos para vocês entenderem meus pontos de vista aqui nos meus textos.

Os últimos episódios que me atravessaram nesse sentido foram conversas com duas pessoas muito queridas. Uma tinha acabado de voltar de férias com a família; outra tinha acabado de celebrar algumas horas seguidas de sono com seu bebê.

Minha amiga celebrava o fim de um longo período de privação de sono e me disse que só se lembrou do poder do descanso quando voltou a dormir.

A gente se adapta e isso é assustador.

Meu amigo, que saiu de férias e voltou encantado com o poder do descanso, ficou extasiado e desejando que aquele estado de contentamento e encantamento durasse mais alguns dias.

Mas a gente se adapta e isso é assustador.

Sabe por que estas duas histórias se conectam? Porque elas são histórias sobre o poder do descanso. O descanso nos faz ver as cores mais vivas. Nos faz ficarmos mais afetivos, mais conscientes, mais reflexivos, mais criativos, mais pacientes, mais disponíveis para o que importa, mais atentos, mais felizes, mais vibrantes.

Ao nos devolver ao nosso próprio corpo, trazendo de volta nossa condição de presença e atenção, o descanso nos devolve nossa humanidade em um mundo que corre, nos acelera e nos faz pensar que somos máquinas.

Tenho buscado afirmar a importância de nos reconectarmos com esse corpo, que é humano e precisa de ritmos diferentes do ritmo da aceleração; da importância de regenerarmos estes corpos, pois passamos do limite e estamos operando (a que custo?) apenas porque muitos de nós estão medicados.

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O que mais me assusta é a certeza de que estes corpos cansados não são consequência da aceleração, mas fazem parte deste projeto, deste mundo que corre, cresce, se desenvolve, avança e progride por meio de um projeto de "progresso" que nos trouxe até aqui e que já entendemos que deu errado.

Corpos cansados não tecem comunidade, não constroem vínculos, não se interessam pelos outros. Corpos cansados trabalham mais, produzem mais, competem mais, pensam mais "no seu", consomem mais e rolam mais os feeds buscando fórmulas prontas de felicidade.

Nosso cansaço não é consequência deste mundo. É condição para que ele exista e se reproduza.

E, apesar de estarmos todos exaustos e cansados e querendo desacelerar, quantas vezes, no nosso dia a dia, sem querer (ou sem uma reflexão profunda) reproduzimos ideias que reforçam a cultura da aceleração?

Quando falamos, por exemplo, que descanso é privilégio, estamos deixando de entender que descanso é um direito.

Quando falamos que vamos tirar "merecidas férias", está implícita uma noção de descanso como merecimento do esforço de trabalhar.

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E quando dizemos que vamos tirar uns dias de descanso e vamos voltar "com todo gás", sugerimos que a pausa é combustível da produtividade.

Em contextos desiguais como o nosso, é ainda mais importante afirmarmos que o descanso não é uma escolha (para poucos), mas deve ser um direito (de todos). Porque prescrever descanso em um contexto desigual é mais violento ainda com quem não tem condição de descansar.

O descanso é um direito poderoso. Que nos devolve nossa humanidade e nossa capacidade de viver em coletivo e construir afetos. Não é privilégio, não é merecimento e nem é combustível da produtividade.

Apenas é. Porque somos gente. E gente precisa descansar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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