Michelle Prazeres

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Opinião

Ninguém está dando conta. Que tal deixar um pratinho cair?

Sabe aquele número de circo em que uma pessoa equilibrista maneja vários pratinhos e nenhum cai? Pois é. Estamos vivendo a nossa vida assim, achando que vamos manter "tudo sob controle" sempre, ininterruptamente. Não vamos.

Um dia destes, uma amiga perdeu a receita médica de um remédio da filha. Eu a vi chorando, sem saber o que fazer. Acolhi e, tentando não invalidar a dor dela, disse: "Fica tranquila. Algum pratinho vai cair. Ainda bem que foi esse".

O que eu disse a ela foi sim uma tentativa de consolo, mas a real é que celebrei verdadeiramente que aquele esquecimento, aquilo que estava parecendo uma falha supergrave para ela era uma coisa simples. E que, dentre tantas das quais ela estava dando conta, era desimportante.

Às vezes, passamos por situações parecidas com a dela, mas não conseguimos enxergar a verdadeira dimensão das coisas e qualquer erro nos coloca em uma espiral de culpa e sensação de impotência. Porque parece que está todo mundo dando conta. Mas ninguém está.

Penso que ninguém é humanamente capaz de dar conta de tanto, porque o tanto que o mundo hoje exige de nós é desempenho de máquina.

Todos os dias, somos inundados com posts nas redes sociais de pessoas fazendo mil coisas —e todas maravilhosas: entregando no trabalho, viajando para lugares paradisíacos, celebrando conquistas. E estes conteúdos circulam por aí promovendo uma concepção de sucesso que está relacionada à hiperprodutividade.

Expressões como "foguete não dá ré" me dão náuseas. Fico me perguntando o que falta acontecer para pararmos de falar essas bobagens que alimentam uma cultura e um estilo de vida que nos trouxeram até aqui.

E, convenhamos: já vimos que deu errado e que precisamos voltar muitas casas, porque o planeta simplesmente não comporta este modo de viver e de se relacionar com ele. Desacelerar é preciso.

Estamos exaustos, cansados e exauridos e seguimos achando chique estas pessoas que desempenham (trabalhos, hobbies e relacionamentos - tudo!) como se fossem máquinas.

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Continuamos achando bonito dizer que somos superocupados. Eu acho supercafona. Acho brega mesmo aquela pessoa que nunca pode, nunca está e tem uma vida tão cheia, que é vazia.

Quantas coisas miúdas e outras não tão miúdas nós fazemos todos os dias e que —fazendo ou falando— ajudamos a reproduzir a cultura da aceleração?

E o que é mesmo essencial?

É mesmo essencial zerar as notificações do WhatsApp todos os dias? (O meu, nesse exato momento, tem 43 não lidas e demorou algum tempo para eu conseguir ficar em paz com isso).

Precisamos mesmo saber de todos os assuntos da atualidade para não ficar por fora na conversa da rodinha de amigos?

Precisamos mesmo completar a lista de tarefas ao final do dia? Precisamos mesmo de uma lista de tarefas?

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Tempos acelerados pedem de nós atitudes de frenagem e flanagem. Eu sei. Nem sempre elas são possíveis (especialmente na relação com o trabalho para quem não tem o privilégio de ter os boletos pagos).

Mas para algumas pessoas, acredito que seja possível, todos os dias, se acolher pensando que não vamos dar conta de tudo e está tudo bem. Isso ajuda a gente a entender o que é urgente mesmo e o que é urgência fabricada pelo mundo que corre. Ajuda a eleger qual pratinho podemos deixar cair. E não quer dizer que seremos irresponsáveis com o pratinho que cai.

Em vez de "tudo sob controle", que tal "tudo sob cuidado"? Que tal buscar entender o que precisa mesmo de resposta rápida e o que pode esperar um pouco, pode ser adiado ou mesmo pode não ser feito? Que tal pensar que é possível falhar (e erros são bem vindos, pois somos gente e vamos remendar o possível cuidadosamente)?

Desacelerar é também se perguntar quando a velocidade é necessária e quando ela não é, mas estamos correndo, apenas porque isso virou o "normal" (ou automático) ou porque estamos anestesiados sem pensar direito na situação.

Desacelerar é desanestesiar, para entendermos o que pode esperar.

Conversar. Organizar. Escutar. Compreender. E, se possível, escolher.

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Estes dias uma amiga querida me perguntou "Como a gente dá conta de não dar conta? Como dar conta quando não tá dando conta?". São boas perguntas, porque o mundo acelerado vai se autovalidando por meio de discursos que nos fazem sentir mal em qualquer situação.

Se não podemos escolher, sentimos raiva e frustração, porque este mundo diz "o problema é você, que não conseguiu se organizar". Se conseguimos escolher, este mundo diz "que fracasso, hein? Como assim você não performou e não entregou tudo?".

Não somos desorganizados nem fracassados.

Precisamos deixar pratinhos caírem.

Que sejam pratinhos desimportantes.

E como saber o que é desimportante?

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Importante é a vida.

O resto é urgência fabricada pelo mundo acelerado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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