A pressa da cidade grande: música convida a desacelerar e sentir o agora
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"Nesse Exato Momento", de Almério, é um espetáculo-convite à presença e à reflexão sobre o tempo em suas diversas facetas.
O cantor abriu o show de estreia da turnê em São Paulo (realizado no dia 22 de maio no Itaú Cultural) agradecendo a presença das pessoas em uma noite chuvosa (talvez por saber o quanto é difícil se locomover na região central desta cidade em dias assim?).
Na sequência, e gerando uma profunda identificação (pois também sou pernambucana, como ele), conta que quando chegou pela primeira vez na cidade, parecia que ela ia o engolir.
É mesmo esta a sensação que a gente tem quando chega aqui. "Como pode, hoje, esta mesma cidade caber todinha no meu coração?", pergunta, sinalizando à plateia o conforto e o acolhimento que hoje em dia sente por aqui.
O tempo é construtor de vínculos e afetos, gerador de pertença.
Durante a apresentação, o artista evoca diversas vezes um convite à presença e à reflexão sobre o tempo e a condição de aceleração da cidade.
"Bora agora!
É pra já, pra ontem!
Anotem!"
Este é o apelo da faixa que dá nome ao disco e à turnê.
O tempo foi convertido em recurso no modo acelerado da vida da grande metrópole e tudo parece ser urgente.
"Laroyé", a faixa que abre o espetáculo (e o disco), é uma canção a Exu, orixá citado no ditado iorubá "Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje", que versa sobre a amplitude do tempo.
O tempo e seu caráter cíclico e circular, em contraposição à crononormatividade do tempo linear, que anda só pra frente.
Em "Suspiro", música que no disco é uma parceria com Zélia Duncan, ele canta "um segundo como um suspiro acaba. Um instante quando não vivido encerra". E a faixa "Antes de você chegar" é também sobre uma espera: no show ele conta a história que escreveu a música de fato esperando uma pessoa chegar antes que ele concluísse a composição.
O tempo é também percepção do tempo, que muda de acordo com o momento, o ambiente, as pessoas e os afetos ali envolvidos.
Também faz parte do repertório selecionado para o show "Do Avesso", de Juliano Holanda, outro parceiro do cantor; e "15 Segundos", composição dos dois.
Na primeira, ouvimos:
"Pra quem sabe caminhar sem ter pressa de chegar
Um tropeço pode ser um passo
Um abraço pode ser um bom começo
Pra quem sabe se virar do avesso".
O tempo pode ser pausa e a pausa também integra o movimento. Não é por que estamos "parados" no agora que não estamos em movimento.
Na segunda, um dos versos que mais me tocam é:
"É o tempo pedindo um tempo
Na hora certa em que me atrasei
Pra esse exato momento
Pra esse exato momento".
O tempo-ritmo, tempo justo das coisas. Para algumas delas, o que aparenta ser tardio pode ser o tempo certo.
Mostrando que relações humanas são tessituras que se dão no tempo, ele também celebra as artistas e os artistas que o constituíram e o guiam, enfatizando a importância das relações e das pessoas durante o espetáculo.
Comunidade que é construída no tempo-comum, tempo do Outro, para o Outro, interessado pelo Outro, deixando-se afetar pelo Outro.
Por fim, neste show, ele apresenta, em suas palavras "o olhar do artista presente no seu tempo".
O tempo-hoje, arte que capta o espírito do tempo em que acontece.
Presente no espetáculo em palavras de protesto do artista engajado que é, especialmente quando defende os direitos da comunidade LGBTQIAPN+ e denuncia realidades como "o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+ no mundo".
Almério agradece: "obrigada por estarem aqui me dando a atenção de vocês em um mundo tão caótico".
O tempo tempo-da-arte e tempo-na-arte, tempo da experiência, que nos faz habitar o tempo, ficar em suspensão, estar ali, viver um instante que nos mostra que somos gentes e não máquinas. Tempo-arte que teletransporta no tempo e cria uma espécie de fresta, uma fissura no tempo. Como se parasse o relógio do tempo cronológico e ativasse uma temporalidade própria, na qual não percebemos o tempo (cronometrado) passar. É um instante-todo. Só percebemos que passou quando acabou.
Em "Nesse Exato Momento", Almério convida à presença, chama o tempo para bailar e celebra a arte, a música, a dança e a poesia como regeneração do corpo acelerado e desatento da cidade grande.
Um espetáculo arte-desaceleração. Um convite ao tempo-fenda da contemplação que, de alguma maneira, nos faz sentir... vivos.
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