Michelle Prazeres

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Opinião

Gente ou máquina? Por que não precisamos de amizades 'de baixa manutenção'

Recentemente, acompanhei um certo buzz relacionado à expressão "relação de baixa manutenção".

Curiosamente, em minha rede de relações, comecei a testemunhar diálogos a respeito do tempo, da energia e da dedicação que as relações demandam e sobre como supostamente não temos disponibilidade para relações "de alta manutenção", ou seja, que seriam demandantes e dariam "muito trabalho".

Mas o que isso tem a ver com o tempo e a aceleração?

Uma das coisas que mais gosto de fazer no meu trabalho é analisar expressões e termos que usamos de forma corriqueira, às vezes até inocentemente, mas que contribuem para a reprodução de uma cultura acelerada e adoecedora.

Se dez entre dez pessoas com quem conversamos afirmam que estão exaustas, cansadas e querendo ir um pouco mais devagar, por que será que estas mesmas pessoas se acham o máximo quando estão superocupadas?

Ou reclamam de estarem exaustas, quando estão, na verdade, fazendo um autoelogio? Ou ainda olham torto quando algum colega de trabalho diz que está indo embora pontualmente às 18h ou que vai sair mais cedo para buscar um filho na escola?

A ideia de que relações podem ser de baixa ou alta manutenção está para mim nesta mesma seara: a das expressões que contribuem para a naturalização e a normalização do mundo acelerado. E se a gente usa essas expressões sem entender bem por que, estamos sendo cúmplices, mesmo afirmando que gostaríamos de viver em um mundo mais humano e desacelerado.

Vou contar a vocês o que me incomoda nesta expressão.

Para começo de conversa, me incomoda que ela sugira que as relações humanas estão no âmbito da produtividade. Parece que existe uma medida certa ou uma média de energia, tempo e dedicação que seria razoável para todas as relações. E que uma relação que demanda um pouco mais de dedicação seria muito trabalhosa e seria razoável —inclusive— pensar em descartar da sua vida, em nome de sua tranquilidade ou para viver apenas aquelas relações que não dão muito trabalho.

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Curioso. Em um mundo em que é razoável estar 24 horas por dia, 7 dias por semana disponível para o trabalho, para o consumo ou para rolar o feed nas redes sociais, as relações é que tomam tempo e energia demais?

A quem interessa que não tenhamos tempo para ser gente e nos relacionarmos? A que projeto de mundo serve este discurso de que precisamos nos livrar de relações que dariam "muito trabalho"?

Relações humanas dão muito trabalho.

Demandam tempo, atenção, energia, dedicação e muitas outras coisas. É claro que podemos atravessar fases da nossa vida em que não estamos tão disponíveis para cultivar alguns afetos. E precisamos, nestes momentos, nos comunicar e solicitar a compreensão das pessoas de quem gostamos. Também é verdade que algumas relações demandam menos dedicação do que outras. Ou que a algumas delas desejamos nos dedicar mais (ou menos).

Minha questão não é a complexidade e a diversidade temporal e afetiva das relações. É com a lógica de que a dedicação a elas pode (e deve) ser gerenciada, como se fossem um trabalho.

O filósofo sul coreano Byung-Chul Han (cuja obra é meu objeto de estudo) tem uma série de livros em que fala sobre esta questão. Vivemos em um mundo que está expulsando o outro. Nos interessamos narcisicamente por nós mesmos. Somos sujeitos do desempenho.

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A lógica da produtividade se alastrou para outros campos da vida. Queremos ser os melhores em nossos hobbies, "entregar tudo" nos nossos relacionamentos, bater todos os recordes nos esportes. No caso da expressão que me incomoda, parece que queremos "otimizar" as nossas relações de amizade. E isso não existe.

Também Han diz que em um mundo onde há espírito comunitário e criamos disposição de ressonância e capacidade de ecoar o outro, não é preciso "fabricar empatia". Se estamos de fato conectados, podemos, inclusive, ficar um tempo sem promover encontros, que se tivermos uma relação madura e dialogada, provavelmente vai ficar tudo bem.

Pensar desta forma é mecanizar (e, ousaria dizer, matar) relações que são vivas e que, portanto, terão características próprias e um dinamismo que exige de nós presença e atenção contínuas para serem cultivadas. O problema não está na complexidade das relações, mas, sim, num mundo que quer que as gerenciemos como se fossem projetos.

Em vez de dizer "preciso de amizades de baixa manutenção", que tal dizer que está atravessando um momento de sobrecarga e precisa de mais leveza ou está sem tempo para priorizar esta relação neste momento? Que tal olhar periodicamente para aquelas relações importantes para você e que você pareceu descuidar?

Espero que este texto não sirva para que alguém justifique a sua ausência ou a "falta de tempo" para se dedicar a seus afetos. Pelo contrário. Advogo que —coletivamente— precisamos liberar tempo para os afetos. E limitar tempo e energia que dedicamos ao trabalho e ao consumo. E a suas lógicas.

Em um mundo que corre, muitas vezes somos convidados a viver estes dilemas e morar nestas contradições. Muitos de nós não conseguimos (ou não temos condições) de fazer boas escolhas de tempo para nutrir nossas relações.

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Se estamos atravessando um momento como este ou se estivermos atentos e acordados, perceberemos quais relações demandam algum cuidado, uma conversa sincera ou um encontro revigorante. Mas talvez nosso esforço seja o de cultivar relações saudáveis e possíveis sem classificar isso como "manutenção".

Precisamos cuidar das palavras. Elas não apenas nomeiam coisas. Elas plantam sentidos. E se elas plantam sentidos, prefiro semear a ideia de que somos gentes e não máquinas. E de que urgente mesmo é gente.

Não precisamos de relações de baixa manutenção. Precisamos parar de usar expressões do universo da produtividade para falar de relações humanas. E precisamos viver as relações em suas especificidades e vivacidades.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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