Estudo brasileiro inédito: comer muito ultraprocessado modifica seus genes

Ler resumo da notícia
Parece comida, a gente até come, mas comida pra valer não é, como entregam as letras miúdas da lista de ingredientes nas embalagens chamativas, formando nomes esquisitos de substâncias que nunca frequentaram a cozinha de qualquer casa.
No entanto, a humanidade se alimenta cada vez mais de ultraprocessados. Nos Estados Unidos, eles já representam 58% do que é posto à mesa da população. E esses produtos estão associados ao crescimento galopante de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, depressão e diversos tipos de câncer — que, aliás, não só crescem como vêm surgindo em idades mais precoces.
A questão é: por que os tais alimentos ultraprocessados, se devorados com frequência, nos deixariam doentes? A resposta simplista é que eles seriam cheios de açúcar, sal e gorduras, cujo excesso pode ser nocivo. Fato. Mas isso é equipará-los aos almoços de domingo preparados por uma avó.
"A verdade é que os mecanismos envolvidos na relação deles com a nossa saúde são pouco conhecidos", admite o endocrinologista Marcio Mancini, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), onde também lidera o Grupo de Obesidade do Hospital das Clínicas.
Na minha opinião, aliás, a indústria se fia nisso. A toda hora saem estudos mostrando que quem se esbalda com esse tipo de alimento tem mais infarto, tumor de intestino, gordura corporal... O desafio é que ninguém consegue traçar o caminho exato ligando uma coisa à outra.
Ontem (3/11), porém, pesquisadores do grupo do professor Mancini, na USP, e da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), no Rio Grande do Sul, publicaram um estudo de cair o queixo, abrindo a possibilidade de um maior entendimento.
O trabalho publicado na Nutrients, que tem como autora principal a nutricionista Alessandra Escorcio Rodrigues, aluna de Mancini, mostra que consumir muito alimento ultraprocessado no dia a dia modifica nada menos que 80 regiões do nosso genoma. Ninguém esperava tanto. E sim, senhores, foi a primeira vez no mundo que se viu isso.
Como foi o estudo
Os pesquisadores selecionaram 30 mulheres entre 20 e 30 anos, que tinham IMC (índice de massa corporal) normal ou até mesmo indicando sobrepeso e obesidade. Eles tomaram o cuidado de garantir que nenhuma delas fumava, bebia muito álcool, tinha câncer, doença infecciosa ou outra complicação de saúde mais séria. Enfim, nada que pudesse levantar a suspeita de ter influenciado no resultado.
O que interessava era a maneira como se alimentavam. "Elas foram divididas conforme o consumo de calorias vindas de ultraprocessados", conta a doutora Alessandra. "Dessa maneira, um grupo tinha um consumo bem baixo: em média, só 14% das calorias diárias vinham desse tipo de alimento. No extremo oposto, em outro grupo de mulheres, cerca de 45% das calorias consumidas diariamente vinham de ultraprocessados."
Na sequência, foi coletada uma amostra de sangue de cada participante para a realização de um exame genético de sequenciamento de nova geração, conhecido pela sigla em inglês NGS. É o que existe de ponta para vasculhar o nosso DNA do cabo ao rabo, permitindo ler milhões de fragmentos genéticos e visualizar onde os genes estão se expressando mais ou se expressando menos.
Aliás, no passado, um outro estudo tentou encontrar alterações genéticas em consumidores de ultraprocessados. Mas deu em água, sem achar nada muito relevante. "Talvez, em primeiro lugar, porque examinou crianças e quem sabe o tempo de vida com esse padrão alimentar faça diferença", pondera a doutora Alessandra. "Mas, principalmente, vale notar que eles usaram uma tecnologia mais antiga, que conseguia focar em alguns genes apenas."
Ou seja, é possível que tenham apostado nos genes errados. Bem diferente de olhar para o conjunto completo de informações do nosso DNA, como foi feito agora — e em pessoas adultas.
O que Alessandra Rodrigues e seus colegas enxergaram, comparando os dois grupos de participantes, tinha literalmente um colorido diferente: em 80 regiões, nas mulheres que consumiam muitos produtos ultraprocessados, tudo aparecia em vermelho. Sinal de que aqueles genes estavam berrando ordens ao organismo. Já no grupo em que o consumo de ultraprocessados era tímido, as mesmíssimas regiões surgiam em azul, indicando que os genes ali estavam quase calados.
Não dá para afirmar que os genes expressados — aqueles que berravam em vermelho — favoreçam doenças, embora alguns deles já tenham essa má fama. Mas é uma pista que pode levar finalmente a uma resposta: o consumo exagerado de ultraprocessados poderia nos adoecer não só porque eles são repletos de açúcares, gorduras, sódio e calorias, o velho papo de sempre, mas porque dariam voz a genes que preferiríamos manter de bico fechado.
Epigenética pode explicar
O que aparece em vermelho e azul no exame de sequenciamento de nova geração é o que os cientistas chamam de metilação — um processo que é chave na epigenética. E ela, por sua vez, é essencial para compreender essa história.
Ora, nascemos com uma espécie de receita escrita no DNA de como funcionará o nosso organismo, incluindo se ele terá ou não tendência a ter determinados problemas. Até aí, não costuma ser destino, mas uma possibilidade. Tudo depende do que é acionado e do que não é.
"Você não muda a fita do DNA, ela continua igual a vida inteira", esclarece o professor Marcio Mancini. "Porém, conforme o ambiente e como nos comportamos, podemos provocar ligações, ou não, de um grupo metil em diversos trechos do DNA, aumentando ou diminuindo a sua expressão."
Traduzindo um pouco a genética, o grupo metil é o conjunto de um átomo de carbono com três de hidrogênio. "Se um gene está hipermetilado, como dizemos, ele está menos ativo", explica a doutora Alessandra.
Em outras palavras, o tal agrupamento metil está segurando a sua expressão. Se, por acaso, ele estiver envolvido no surgimento de alguma doença, isso será ótimo. No exame, a hipermetilação era denunciada pelo tom azul.
"Já se um gene está hipometilado, com pouca metilação, ele se expressará mais vontade, isto é, estará bem ativado, aparecendo em vermelho", conta a nutricionista.
E agora?
A pesquisadora agora pretende seguir investigando se, nas pessoas com alto consumo de ultraprocessados e essas regiões ativadas, algumas doenças crônicas não transmissíveis seriam mais incidentes.
Segundo ela, determinadas regiões que aparecem ativadas nas consumidoras vorazes de ultraprocessados ainda nem sequer têm seu papel esclarecido pelos geneticistas. Mas outras, sim. E está aí a nossa expectativa de finalmente ligar os pontos entre os ultraprocessados e a explosão atual de doenças como diabetes, obesidade e câncer.
Futuro comprometido
Um alerta é que sabidamente a epigenética molda as futuras geracões. "O óvulo de uma mulher e o espermatozoide de um homem transmite esse DNA metilado de uma forma diferente para os filhos", afirma o professor Mancini. "Provavelmente, a obesidade de hoje tem a ver com a epigenética do homem primitivo e de outras gerações anteriores à nossa que passaram fome", exemplifica.




























Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.