Lúcia Helena

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Reportagem

Por que uma dieta capaz de imitar o jejum ajudaria pacientes com câncer?

Tudo começou quando camundongos, fadados a existir por no máximo três anos e olhe lá, continuavam serelepes ao completar o quarto aniversário, vivendo em média 40% de tempo a mais. O segredo dos animais estudados no Instituto de Longevidade da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, era a estratégia aplicada pelo professor Valter Longo, bioquímico renomado, com artigos publicados nas mais importantes revistas científicas. E a tal estratégia era aparentemente simples: durante cinco dias a cada mês, os bichinhos não recebiam qualquer alimento.

Claro que ninguém aceitaria de bom grado ficar sem comida por alguns dias todos os meses. Por isso, o professor Longo e seus colegas desenvolveram a FMD, sigla inglesa para a dieta que imita o jejum. Nela, são oferecidas pouquíssimas calorias, com refeições que podem se resumir a algumas folhas com fios de cenoura para satisfazer mais os olhos que o estômago, um punhado de castanhas e um caldo ralo, por exemplo.

Esse cardápio frugal seria o suficiente para diminuir o risco de a pessoa despencar por aí e, ao mesmo tempo, para enganar o sistema nervoso central que, acreditando se tratar de jejum pra valer, dispararia algumas respostas dos pés à cabeça.

O cientista nascido em Gênova, na Itália, também conduziu pesquisas para compreender a fundo essas respostas, que seriam as razões por que uma dieta assim aumentaria a longevidade. E acabou estendendo essa história para o câncer — de novo, primeiro com a ajuda de camundongos.

Pois bem: um dos motivos por que a dieta imitando o jejum ajudaria no combate a essa doença lhe veio à mente quando se viu diante de uma menina com neuroblastoma avançado, um câncer de células nervosas, no Hospital Infantil de Los Angeles. É o que ele conta no livro "Desnutrir o câncer, nutrir o paciente" (lançado no Brasil pela Editora Cultrix).

Na ocasião, ele se lembrou do que chama de resistência ao estresse. O estresse, no caso, é o das células sadias que, sem alimento por um tempo, resistem ou se defendem por diversos mecanismos e isso as tornaria menos propensas a sofrer com os efeitos tóxicos da quimioterapia.

Em contrapartida, imitar o jejum parece bagunçar a vida, que pretendia ser eterna, das células cancerosas. Elas, ao contrário, se tornariam mais vulneráveis aos quimioterápicos e ao próprio sistema imunológico, algo que o professor já havia demonstrado em camundongos no ano de 2008. Não à toa, o cientista teria dito à equipe encarregada da menina com neuroblastoma que ele não tinha "uma bala de prata para curar o câncer, mas talvez um escudo de prata."

Valter Longo nos faz imaginar uma cena bélica com soldados romanos: as células sadias se ajoelhariam atrás dos escudos e as doentes se manteriam em pé, porque o câncer quer seguir em frente mesmo se o organismo está jejuando. "Sendo assim, quem levaria a flechada do exército adversário?", escreve o pesquisador, que também dirige o Laboratório de Longevidade e Câncer do Instituto de Oncologia Molecular, em Milão, na Itália.

No próximo dia 4 de novembro, diga-se, Valter Longo estará no Brasil, convidado pelo Instituto Vencer o Câncer. Criado em 2014 pelos oncologistas Antonio Buzaid, Fernando Maluf e Drauzio Varellaos dois primeiros é que, hoje, cuidam da entidade —, seu objetivo é pensar em políticas públicas para melhorar as condições de acesso, diagnóstico e tratamento das pessoas com tumores malignos.

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"Um dos nossos focos, atualmente, é a criação de centros de pesquisa em câncer pelo Brasil, a fim de dar aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) um cuidado melhor", diz o doutor Buzaid, diretor do Centro de Oncologia do Hospital BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo. "Quando esses centros realizam ensaios clínicos em fase 3, isto é, aqueles estudos que comparam um tratamento com outro, podemos oferecer algo de ponta a essas pessoas", justifica.

Foi com o doutor Buzaid, um dois anfitriões de Valter Longo no país, que conversei para entender um pouco mais sobre os efeitos da dieta que imita o jejum nos pacientes oncológicos.

Não é para todo mundo que tem câncer

"Em primeiro lugar, é uma dieta muito dura de ser seguida", reconhece o médico brasileiro. "E ela exige a orientação de perto de um nutricionista especializado", acrescenta. De fato, ao ler este texto, nem cogite fechar completamente a boca, se você tem câncer.

O protocolo de uma dieta dessas é complexo. Implica em, por exemplo, dar um pouco mais de proteína entre uma sessão e outra de quimioterapia — quando a dieta imitando jejum é aplicada — para evitar uma grande perda de massa muscular. Ora, se a musculatura de alguém com câncer vai para o brejo, isso piora inclusive suas chances de superar a doença. "Os pacientes também emagrecem um pouco nos dias em que fazem a dieta. Por isso, outra preocupação é recuperar o peso de maneira saudável entre um ciclo e outro", conta o doutor Buzaid.

Ele lembra que é preciso considerar o perfil de cada pessoa. "Já existem alguns estudos clínicos mostrando que a quimioterapia pré-cirurgia para retirada de um câncer de mama, que nós chamamos de neoadjuvante, se torna mais eficaz em mulheres que fazem a dieta imitando o jejum. Além disso, ela tende a provocar menos reações adversas", exemplifica. "No entanto, eu pergunto às minhas pacientes com câncer de mama: vocês aguentariam isso sem ter vontade de sair brigando com alguém? Porque eu mesmo, se passo mais de quatro horas sem comer, sinto dor de cabeça, fico irritado e me torno hostil."

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Mas, sim, de vez em quando ele encontra quem esteja disposto a tudo para vencer um câncer. Esses indivíduos precisam ser bem acompanhados se toparem a tal dieta que faz o cérebro entender que está em um deserto sem comida.

Apesar de pequenos, existem trabalhos sobre os efeitos dessa proposta, sempre combinada à quimioterapia e a outros tratamentos contra o câncer, para casos de tumores de pulmão, útero, próstata, intestino, rins e sistema nervoso, além de linfomas e leucemias e do câncer de mama, já citado.

A questão da glicose

Em 1931, o médico e fisiologista alemão Otto Warburg ganhou um Nobel por demonstrar que uma célula cancerosa não quer nem saber: com ou sem oxigênio, ela pega a glicose, quebra essa molécula sem a menor cerimônia e a transforma em energia, produzindo então um bocado de ácido lático. Sim, o mesmo ácido lático que um músculo fora de forma, quando se exercita além da conta e é obrigado a arrumar energia extra, despeja na circulação, causando dores e cãibras. Note: não se trata de um mecanismo de obtenção de energia convencional, por assim dizer.

"Na época, Warburg não sabia por que as células do câncer faziam isso", conta o doutor Buzaid. "Afinal, quebrando a glicose direto em vez de pegar o outro caminho, que aprendemos nas aulas de biologia como ciclo de Kreebs, elam produziam menos energia. Não parecia fazer muito sentido. Hoje, porém, a gente entende que, desse jeito, o ácido lático baixa o pH do tumor. Tudo ao seu redor fica mais ácido. Essa acidificação do ambiente tumoral, por sua vez, faz com que o sistema imune não funcione tão bem. Ou seja, é uma maneira de o câncer escapar do ataque das células de defesa."

Portanto, quando a dieta que imita o jejum reduz drasticamente a glicemia, ela ajuda nesse sentido. E fica a dica do doutor Buzaid: "Diminuir o consumo de açúcar e de todas as outras formas de carboidratos simples, como as farinhas refinadas, é sempre bom. Até porque isso ajuda a manter a insulina baixa."

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Níveis mais baixos de insulina são, de fato, associados a um menor risco de câncer e de a própria doença avançar em quem já é paciente. "Se, no laboratório, você coloca um pouco de insulina junto com células cancerosas, elas crescem mais", explica o oncologista.

O que comer ou deixar de comer

É por isso também que os cientistas consideram a dieta mediterrânea a melhor pedida na prevenção do câncer. "Cheia de hortaliças, frutas e grãos integrais com suas fibras, mas com pouco açúcar e proteínas magras, esse padrão alimentar mantém a insulina mais baixa. Pensando em câncer, todos deveriam comer como se tivessem diabetes", brinca o doutor Buzaid.

O ideal seria manter distância de refrigerantes, ultraprocessados, doces e, sim, sucos, naturais ou não, com suas calorias líquidas. A sugestão vale para quem está em tratamento e para quem se preocupa com a prevenção. O doutor Buzaid cita até mesmo estudos mostrando que dietas muito inflamatórias e calóricas na adolescência aumentam o risco de câncer de mama na mulher jovem.

Ou seja, para quem não consegue imitar o jejum, não é necessário fechar a boca de vez — e, sim, fechá-la apenas para aquelas bebidas e alimentos cheios de açúcar, gordura, sal, conservantes, gorduras e calorias. Na lista do supermercado, cá entre nós, a gente sabe direitinho quais são.

Reportagem

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