Novo tratamento dobra a sobrevida no câncer de cabeça e pescoço avançado

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Neste mês, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o pembrolizumabe para tratar o câncer de cabeça e pescoço localmente avançado. Entendo, parece que estou escrevendo grego. Puro "medicinês". Mas já vou explicar.
Antes só queria contar que a notícia quebra um jejum de mais de duas décadas sem aparecer nada de muito novo para essas pessoas com um câncer esparramado na boca, na garganta, na laringe, no nariz ou, ainda, nos seios nasais.
Ah, sim, no pacote dos tumores de cabeça e pescoço também estão os de tireoide, mas eles estão fora da história de agora. Até porque essa glândula não é revestida pela mesma mucosa do restante — o que, por sua vez, ajuda a gente a entender o que os médicos querem dizer com o termo "localmente avançado".
Um tumor localmente avançado não deu metástase, isto é, uma célula dele não escapou e percorreu grandes distâncias, indo parar em um canto completamente diferente do corpo. Ele só foi crescendo e ganhando cada vez mais o território da mucosa, que é a mesma da boca até o final da garganta, por exemplo. Daí, em uma continuidade, alcançou áreas adjacentes. Ou, quando muito, chegou em um gânglio que estava bem ali ao lado.
Quando é assim, o pembrolizumabe, desenvolvido pela farmacêutica MSD, é uma imunoterapia que dá uma bela sacudida nas células de defesa que estavam marcando bobeira com um câncer ali, diante delas. Para facilitar a vida, nos bastidores os oncologistas chamam esse tratamento simplesmente de "pembro". Ora, vou tomar a liberdade de me referir a ele com a mesma intimidade.
O "pembro" tem, hoje, 39 indicações. É usado para tratar melanoma, câncer de mama, de pulmão, de bexiga... Aliás, já vinha sendo usado, inclusive, nos cânceres de cabeça e pescoço, mas apenas se eram refratários — quando nenhum outro tratamento surtia efeito — ou com metástases.
"Só que oito em cada dez diagnósticos da doença são feitos — tanto na rede pública quanto na privada — quando ela já está localmente avançada", conta Fátima Matos, médica do Real Hospital Português, em Recife, Pernambuco, que é ex-presidente Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço. E, só de câncer de boca, estamos falando de 15 mil novos casos por ano no Brasil, de acordo com o INCA (Instituto Nacional de Câncer). É o oitavo tumor maligno mais frequente no nosso país.
Esses dados dão uma noção do impacto da aprovação recente. Ela não só põe um fim a um longo período sem novidade, mas faz isso em grande estilo. Um estudo, o KEYNOTE-689, mostra que essa imunoterapia é capaz de dobrar o tempo até a doença voltar ou, se não tinha desaparecido de vez na cirurgia, piorar.
O desafio da doença
A parte central do tratamento de um tumor de cabeça e pescoço é, de fato, a cirurgia para removê-lo. Mas, por mais habilidosos que a doutora Fátima e seus colegas cirurgiões sejam, a missão é sempre extremamente delicada. Afinal, por ali passam vasos importantes de montão, a traqueia, o esôfago, músculos... O resultado pode ser mutilante. E causar frustração, quando o bisturi simplesmente não consegue retirar tudo.
A operação é complementada com radioterapia e, às vezes, com quimioterapia, que lança mão de uma droga bastante pesada, a cisplatina, que não só faz cair os cabelos como é capaz de afetar os rins, os ouvidos e o sistema nervoso.
E por que, durante tanto tempo, não surgiu um terapia capaz de ajudar pra valer nesses casos? "Esses tumores ainda não têm mutações muito claras que poderiam ficar na mira de uma terapia-alvo", diz Márcia Datz Abadi. Oncopediatra de formação, ela é diretora médica da MSD.
"Além disso, apesar de todos se espalharem pela mucosa, são cânceres que, olhando de perto, são muito diferentes entre si, conforme o local onde se originaram e outros fatores", complementa a doutora Fátima.
Fim do esconde-esconde
Talvez já tenha parado para indagar por que o nosso sistema imunológico não ataca ferozmente um tumor como faz com um vírus ou uma bactéria. A resposta é fácil: as células cancerosas têm mecanismos para não serem reconhecidas como ameaçadoras.
Elas contam com duas proteínas, a PD-1 e a PDL-1. Uma delas se liga no linfócito, a célula de defesa, como se fosse uma venda em seus olhos. A outra se conecta na célula tumoral, como se fosse uma máscara de disfarce. E assim, diante do que os médicos chamam de checkpoints, os postos de controle da nossa imunidade, ninguém nota nada estranho. O câncer passa batido.
"O pembrolizumabe, porém, inibe essas proteínas e, então, a doença não consegue mais se esconder", resume a doutora Márcia. "Uma estratégia como essa não funciona para todo e qualquer tumor, só para aqueles que são, digamos, mais inflamados, que atraem bastante linfócitos. E, por sorte, é o caso daqueles de cabeça e pescoço."
Como é o tratamento
Antes mesmo de o paciente ser operado, ele recebe o imunoterápico na veia em duas sessões, com um intervalo de três semanas entre elas.
"Depois da cirurgia, são mais três sessões, com o mesmo intervalo", conta a doutora Márcia Abadi. "Só no final dessa etapa, é feita a radioterapia e, eventualmente, a quimioterapia também. A aposta é que o pembrolizumabe melhore a resposta a esses tratamentos", diz ela.
Aliás, quando rádio e químio se encerram, são mais 12 aplicações de imunoterapia para fechar com chave de ouro. A jornada inteira leva cerca de um ano.
O tratamento já deu provas de ser seguro, mas não livre de reações adversas. "A ideia é mobilizar o sistema imunológico contra o câncer, mas pode acontecer de ele fazer isso além da conta", explica a diretora médica da MSD. Aí, podem surgir inflamações na tiroide, no intestino e até nos pulmões. Mas todas essas encrencas costumam ser reversíveis, garantem as duas doutoras.
Excelentes resultados
O tal estudo KEYNOTE 689 contou com 714 pacientes. Eles foram sorteados, ou randomizamos, como preferem falar os cientistas. Nesse sorteio, uma parte foi tratada com todas aquelas sessões de imunoterapia, antes e depois da cirurgia, além de receber rádio e, às vezes, quimioterapia. Quem caiu no outro grupo recebeu a terapia padrão, sem o "pembro".
Os pesquisadores ficaram de olho para ver quanto tempo cada indivíduo levava até acontecer algo chato, como a doença progredir, voltar a surgir na mesma região da cabeça e do pescoço, dar metástase ou, pior, a pessoa morrer.
No geral, aqueles que foram tratados com o imunoterápico viveram, em média, quase 52 meses totalmente livres da doença, enquanto ela voltou cerca de 30 meses depois naqueles que receberam o tratamento tradicional.
No entanto, se você foca apenas nos pacientes que, de acordo com um escore usado pelos oncologistas, produziam uma quantidade muito grande daquelas proteínas capazes enganar o sistema imunológico, o tempo livre da doença foi ainda maior — praticamente 60 meses contra 26 meses de quem fez o tratamento de sempre, sem o pembrolizumabe. Mais que o dobro. No câncer de cabeça e pescoço, isso acontece a maioria dos pacientes.
"Antes, eu só tinha a oferecer a minha expertise como cirurgiã, sabendo que, mesmo assim, o risco de um tumor localmente avançado voltar e, mais que isso, criar metástases em um período curto era grande", nota a doutora Fátima. "Nunca tivemos algo tão promissor, acenando com uma sobrevida maior e de qualidade para os pacientes."
E aquela velha história...
Sabe qual é? Prevenir continua sendo o caminho ideal. "Os principais fatores de risco para o câncer de cabeça e pescoço ainda são o consumo de álcool e o tabagismo", informa a doutora Fátima. "E, nos últimos anos, a infecção pelo papilomavírus humano, o HPV, cresce e vem se tornando mais uma ameaça muito importante." Ele também causa esses tumores.
Contra a infecção, existe vacina. O álcool merece, no mínimo, moderação. E o cigarro dispensa comentários: o jeito é apagá-lo de vez. "O pior é ver a onda do vape entre os jovens", preocupa-se a cirurgiã. Ela tem razão. A moçada que poderia ter tanto futuro pela frente não imagina a situação de quem comemora ganhar 60 meses meses de vida. E, sim, é uma bela comemoração a que o tratamento aprovado pela Anvisa possibilita.




























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