Lúcia Helena

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Reportagem

Por que o SUS não tem cirurgia para a incontinência urinária masculina?

Três em cada 100 homens que passam por uma cirurgia de próstata por causa de um câncer sentem urgência para urinar, não se seguram, e o líquido escoa pelo caminho. Não estou falando, aqui, da incontinência urinária temporária, que tende a sumir um mês após esse tipo de operação, mas daquela que persiste.

Notem: esse "três em cada 100" é a minoria da minoria dos casos. Mas, se você lembra que são cerca 71 mil brasileiros com câncer de próstata por ano, a maioria deles operados, então são mais uns 2.000 homens que deixam de controlar a micção só de janeiro a dezembro. E muitos na faixa dos 50 anos ou pouco mais de 60.

Para eles, até hoje o SUS (Sistema Único de Saúde) só oferece fisioterapia. Ela é, de fato, excelente para os quadros mais leves e pode ajudar bastante nos moderados. Só que, na incontinência grave, com escapes de grandes volumes de urina, a fisioterapia não surte efeito. E esses pacientes se vêm trocando fraldas cerca de quatro vezes por dia.

Até o próximo dia 6 de outubro, porém, está aberta uma consulta pública na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Sistema Único de Saúde) para que os pacientes com incontinência urinária grave possam receber um esfíncter artificial, tratamento padrão ouro para essa disfunção — ou melhor, o único que resolveria quando alguém perde 250 gramas de urina ou mais todo dia. É um critério para apontar a gravidade.

O peso da urina

Como assim, doutor, pesar urina? — pergunto ao urologista gaúcho Alexandre Fornari, coordenador do Departamento de Disfunção Miccional da SBU (Sociedade Brasileira de Urologia).

Dedicado a essa área, tendo sido em 2006 um dos criadores do ambulatório para cuidar desses pacientes na Santa Casa de Porto Alegre, ele explica: "É que pesamos primeiro uma fralda que, na sequência, é colocada no indivíduo. Depois de 24 horas, se a diferença de peso dela é igual ou maior que 250 gramas, sabemos que é uma incontinência grave."

Mas o médico prefere ver esse peso de outro jeito — como o de um boxeador que não conseguia mais vestir abrigo para treinar. "A carga da fralda fazia a roupa cair", relembra. Ele coleciona histórias assim, em que a perda de urina constante, em grande volumes, arrasou a qualidade de vida de muitos sujeitos. "Um paciente chegou chorando após ter sido encaminhado à fisioterapia no SUS", relembra. "Humilhado, não conseguiu fazer a sessão porque a maca ficou toda molhada."

No entanto, o primeiro parecer da Conitec sobre a incorporação de um tratamento efetivo foi negativo. E essa é a hora de profissionais de saúde e pacientes darem o seu palpite tentando virar o jogo.

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O problema parece não ser o custo

O maior argumento da Conitec contra a incorporação nem é o custo do esfíncter artificia, que hoje gira em torno de 80 mil reais. "Até porque o valor diminuirá bastante com o aumento da demanda, se o tratamento começar a ser oferecido na rede pública, caindo para uns 55 mil reais", explica o doutor Fornari.

Para quem acha esse preço um dinheirama — e é, para o bolso de cada um de nós —, ele pode ser mais barato do que manter alguém com incontinência urinária grave, tendo de fornecer fraldas para o resto da vida. E ainda há o custo de tratar os problemas que esses pacientes apresentam.

"Eles têm mais infecções urinárias, que às vezes exigem até internação", conta o urologista. "Com frequência, também sofrem do que chamamos de dermatite amoniacal". A pele da região da fralda fica com pequenas e dolorosas bolhas por causa do contato constante com a urina. E tudo isso, lembra o doutor Fornari, desprezando um outro custo, nada barato para o planeta: o descarte de tanta fralda.

A Conitec, porém, manifestou a preocupação de que, uma vez aprovando a ideia de o SUS oferecer o esfíncter artificial a quem ficou com incontinência grave após a cirurgia de câncer de proposta — este, aliás, é o mesmo critério da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para o reembolso dos planos de saúde — , outros grupos que também deixam escapar muita urina passem a exigir o mesmo tratamento.

"As outras situações seriam a de homens com doenças neurológicas ou que tiveram um trauma grave de bacia", afirma o doutor Fornari. "Mas 95% dos casos ainda são os de quem passou pela prostatectomia, a cirurgia para retirada de próstata. Então, não faz tanto sentido esse receio", opina.

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Retirada da próstata e incontinência urinária

A parte inferior da próstata — conhecida por ápice prostático — é muito, muito próxima mesmo, do esfíncter urinário, um anel muscular que, ao viver contraído até se desejar urinar, impede a saída do líquido em hora indevida. "Há sempre o risco de, retirando a próstata, especialmente se o tumor está bem perto dessa região, lesionar esse músculo", reconhece o doutor Fornari, observando que a cirurgia robótica pode diminuir esse perigo.

Outra coisa que leva à disfunção miccional é quando fica impossível retirar a glândula masculina desviando-se completamente dos nervos que controlam essa musculatura. "Isso também faz com que o paciente não segure a urina como antes de ser operado", diz o médico.

Há mais mecanismos que ajudam um homem a prender tudo até o momento de urinar no lugar certo. Só que, azar, eles também envolvem a próstata. Ora, neles, a trajetória da uretra — o canal por onde o xixi escoa — atravessa essa glândula. Uns 4 centímetros desse tubo ficam lá dentro, um trecho que é até chamado de uretra prostática. Daí que a própria próstata faz uma pressão nesse pedaço, ajudando a prender a urina.

"Para completar, temos o colo vesical", acrescenta o doutor Fornari. Ele se refere à base da bexiga, que se liga à uretra. Ela é mais uma vizinha próxima. Feita de músculos que também relaxam para deixar a urina sair no momento devido, pode sair machucada na operação para um homem se livrar do câncer de próstata.

"Discute-se se, quando é assim, a reconstrução do colo vesical melhoraria a capacidade de segurar a urina ou não", conta o urologista. "Mas os trabalhos apontam que, mesmo quando é reconstruída, nada volta a ser como era antes."

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Problema temporário

Vale lembrar que quase todos os homens apresentam algum grau de incontinência após a operação e que, para a maioria, tudo se normaliza após o primeiro mês. Para alguns, porém, a adaptação leva até seis meses.

"Digamos que os músculos, antes, tinham de fazer determinada força para segurar a micção e que essa força precisará ser maior dali em diante, por causa da perda de outros mecanismos", esclarece o doutor Fornari. A fisioterapia, aí sim, ajuda bastante.

Continência social

É como os urologistas definem o quadro daquele homem que, geralmente ao fazer um esforço maior, perde uma ou duas gotas de urina. "Se ele apresentava uma incontinência moderada antes e fica assim, consideramos que o tratamento aplicado foi um sucesso", explica o médico gaúcho.

O caminho para isso pode ser a fisioterapia. E, se ela não resolve, até mesmo uma cirurgia para a colocação de um sling, uma tela de polipropileno fixada abaixo da uretra. Ela aumenta a resistência à passagem da urina, mas só a ponto de resolver casos leves ou moderados. O sling, diga-se, também ainda não é oferecido para os homens no SUS.

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Como é o esfíncter artificial

O dispositivo para casos graves tem três partes. "Uma delas é um reservatório de soro, implantado dentro do abdômen", descreve o doutor Fornari. "Em torno da uretra fica outra parte, que lembra a braçadeira de um aparelho de pressão. Ela é cheia de soro, por isso comprime o canal. E, finalmente, há uma bombinha que instalamos no saco escrotal."

Na prática, funciona assim: palpando o saco, o homem consegue sentir a tal bombinha. Ao pressioná-la, o soro sai daquela "braçadeira " e vai para o reservatório no abdômen. Com isso, diminui a pressão ao redor da uretra. Ela se abre e a urina sai.

"Como o reservatório dentro do abdômen está sob uma pressão maior, o soro vai retornando para aquela parte em volta da uretra. Aí, comprimida outra vez, ela se fecha", conta o doutor. Isso leva um minuto e meio. Não terminou? Sente que tem mais? Basta apertar a bombinha de novo.

Tudo, então, volta a ser quase o que era antes. O doutor Alexandre Fornari reflete: "O SUS oferece para as mulheres que retiraram as mamas por causa de um câncer a oportunidade de fazer uma plástica reconstrutora para evitar um baque na qualidade de vida. Por que, então, não reconhece a queda da qualidade de vida dos homens que retiram a próstata e ficam com incontinência urinária grave?", diz. Pensando assim, seria uma questão de equidade.

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