Lúcia Helena

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Reportagem

Mão dupla: o diabetes favorece infecções e elas agravam o diabetes

Nem todo mundo dá a merecida bola ao seguinte: quem tem diabetes deve redobrar a atenção ao calendário vacinal que, no caso, recebe alguns ajustes. Por exemplo: você sabia que um jovem de 18 anos com diabetes tipo 1 deveria se vacinar contra o herpes zóster, apesar de o imunizante ser oferecido para quem tem mais de 50 na população geral?

E será que sabe que uma gripe, se a pessoa não está protegida, pode se tornar bem preocupante com uma glicemia nas alturas e que, por sua vez, o estado gripal forte serve de estopim para alguém com diabetes tipo 2 que ainda não usava insulina começar a aplicar esse hormônio?

Há uma mão dupla e ela é bastante enfatizada na mais recente diretriz sobre o tema da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), lançada no mês passado. De um lado, quem tem diabetes "apresenta maior risco de infecções e de evolução para formas mais graves, além de hospitalizações prolongadas" diz o texto. Ele aponta que esses pacientes são três vezes mais propensos a morrer por complicações de gripe ou pneumonia. Nem os mais moços escapam dessa ameaça. E, por outro lado, bagunçando tudo de vez, o controle do próprio diabetes fica bem mais difícil em quem tem uma infecção dessas.

As maiores ameaças

Pode dar tanta coisa errada com qualquer infecção? Sim. Mas, para quem tem diabetes descontrolado, algumas são mais perigosas. Aí, a pneumonia causada por algum tipinho de pneumococo pode virar bacteremia, quando a bactéria ganha a corrente sanguínea, e sepse, a tal da infecção generalizada.

Em quem é idoso e tem diabetes, toda e qualquer doença respiratória causada por vírus também acende o alerta — especialmente a gripe, a covid-19 e a infecção provocada pelo vírus sincicial respiratório, o popular VSR.

A lista das maiores ameaças se completa com o vírus da hepatite B e com o do herpes zóster. Veja bem: são doenças para as quais existem imunizantes.

Um pilar do tratamento do diabetes

Fui atrás de quem coordenou essa parte da diretriz, a endocrinologista Reine Marie Chaves Fonseca, vice-presidente da SBD. A médica parece estar sempre um passo à frente. Há 31 anos, fundou o Cedeba (Centro de Diabetes e Endocrinologia do Estado da Bahia), lutando para convencer que era necessário um lugar de referência para tratar quem tinha essa doença, quando não havia, nem de longe, a explosão de casos dos dias atuais. "Temos cadastrados mais de 100 mil pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde)", conta ela, que dirige a instituição.

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Hoje, a luta é outra: "É convencer os médicos que atendem quem tem diabetes de que, além de abordarem a dieta, a atividade física, o controle da glicemia, a saúde do coração e outros tópicos, eles precisam prescrever vacinação. Porque, sem ela, todo o resto pode se perder", justifica. Mas, em um congresso com 3 mil inscritos, na sala em que a doutora Reine falou sobre isso só havia uma dúzia de colegas. "Apesar de ser crucial, a imunização é um aspecto do tratamento do diabetes ainda pouco valorizado. Logo, pouco conhecido", lamenta.

Na porta de entrada

O sistema imunológico trabalha em duas equipes. A primeira delas é a da imunidade inata, aquela que age correndo assim que o nosso organismo entra em contato com um agressor. "Geralmente, nas doze primeiras horas de uma infecção", informa a doutora.

Porém, duas estrelas desse time ficam atordoadas quando a glicose está muito elevada no sangue e a insulina também, tentando resolver a situação. Entre os prejudicados estão os neutrófilos que, nesse ambiente açucarado e cheio de insulina, mal armam suas redes, que são literalmente armadilhas para capturar invasores. "E é também como se os macrófagos, células imunes que tentam eliminar agressores logo na porta de entrada, se tornassem lentos", completa a doutora Reine. "Quanto maior a glicemia ou quanto mais descompensado o paciente está, menor é a atividade dessas células de defesa", informa.

Como se abalar a imunidade inata fosse pouco, podem existir mais fatores atrapalhando o esforço inicial das defesas. Um deles é o comprometimento de minúsculos vasos sanguíneos por causa do diabetes, atrapalhando a chegada das células imunológicas ao local da infecção.

"A própria barreira epitelial é mais frágil em quem tem diabetes", lembra a endocrinologista baiana. Imagine a mucosa do nariz: um agente infeccioso que colonize sua superfície consegue achar brechas para entrar. "Sem contar a diminuição da sensibilidade, porque a glicose em excesso danifica nervos. Daí, o paciente pode machucar os pés sem sentir", exemplifica. Este seria mais um portão aberto para agentes infecciosos dos mais diversos.

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Menor produção de anticorpos

A outra equipe do sistema de defesa também não fica ilesa. Eu me refiro à da imunidade adquirida, que aprende a enfrentar um agente infeccioso específico. São os linfócitos B, que lançam seus famosos anticorpos, por exemplo. E outros linfócitos, os T, destruindo células que, por azar, tenham sido infectadas.

Mas aí é que está: "Em um quadro de resistência à insulina, a ação dos linfócitos T deixa de ser a mesma. E a produção de anticorpos costuma cair", explica a doutora Reine.

A resistência à insulina ocorre quando ela já não consegue colocar a glicose presente no sangue para dentro das células. Então, o próprio hormônio fica sobrando na circulação. Detalhe: esse quadro desencadeia uma inflamação baixinha, porém constante. Ela é outro fator que reduz o desempenho do sistema imunológico.

Nada disso vale para aqueles que conseguem cuidar direito do diabetes. "Se há um bom controle glicêmico, a imunidade pode ser quase igual à de um indivíduo sem essa doença", tranquiliza a médica.

O desafio, no entanto, sempre cresce com o passar dos anos. "Fisiologicamente, a glicemia tende a aumentar com a idade", explica a endocrinologista. "E, nesse contexto, há algo acontecendo paralelamente, a imunossenescência, isto é, a diminuição da capacidade de resposta a infecções que a pessoa idosa passa a apresentar. Quando essa imunossenescência se junta ao diabetes, a situação se torna mais delicada." Por essa razão, a diretriz da SBD dá grande ênfase à prevenção de infecções na terceira idade.

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Infecções e complicações

Para piorar, existe o tal caminho de mão dupla, certo? O próprio processo infeccioso faz subir a glicose no sangue. Isso pode chegar a um ponto em que a insulina não dá conta do recado. Muitos pacientes começam, então, a repô-la ou aumentam a dose de hormônio aplicado.

Sem esse ajuste, o corpo às vezes fica em apuros. Afinal, ele precisa de energia para se defender. Bem que tenta obtê-la depressa por outro caminho: quebrando gordura. Só que a natureza não o preparou para isso.

O processo gera um "lixo", que seriam os corpos cetônicos. Em alguns pacientes, seu acúmulo torna o sangue ácido. É a temida acidose diabética, um quadro severo de desidratação, capaz de causar confusão mental, complicações renais e respiratórias, até coma.

Outro risco é o de problemas cardiovasculares. "Vírus, como o da gripe, são capazes de desestabilizar placas nos vasos, que costumam ser mais comprometidos em quem tem diabetes", alerta a doutora. "E isso pode desencadear tromboses e infartos, talvez semanas depois." Daí o recado: quem tem diabetes e está com uma infecção respiratória mais forte deve procurar o seu médico. A orientação dele, nessas horas, previne enormes encrencas.

As vacinas mais cruciais

A diretriz da SBD afirma que todas as pessoas com diabetes, de qualquer faixa etária, devem ser vacinadas contra a hepatite B, o influenza da gripe e contra o coronavírus da covid-19.

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Contra gripe, para quem tem mais de 60 anos, ela indica preferencialmente a vacina high dose, que atiça um sistema imune que já não é mais aquele com uma quantidade maior de antígeno. Ou, então, vale tomar as vacinas com adjuvantes, substâncias que igualmente aumentam a resposta das defesas. "A partir dos 60 anos, também é importante vacinar-se contra o VSR, o vírus sincicial respiratório", diz a doutora Reine.

A vacina pneumocócica conjugada e aquela contra o herpes zóster entram na lista já a partir dos 50 anos — ou mais cedo ainda, como mencionado, para jovens acima dos 18 que tenham diabetes tipo 1 .

O último recado da doutora Reine é dirigido a quem viaja no final ou bem no início do ano para o Hemisfério Norte. "O vírus da gripe que circula no inverno deles é sempre diferente do nosso", observa. "Aos meus pacientes com diabetes, falo para tomarem a vacina contra o influenza por lá, mesmo que tenham se vacinado por aqui" Para isso, em alguns países, basta ir à farmácia no primeiro dia de viagem.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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