Lúcia Helena

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Reportagem

Fim de mistério: o que causa mais de metade dos infartos em mulheres jovens

Quando alguém infarta com seus 30, 40, 50 anos de idade, nem sempre os médicos encontram uma obstrução em uma artéria do coração. Um pedaço do músculo cardíaco morre por falta de oxigenação — o que acontece em todo e qualquer infarto —, mas nada ali aponta exatamente o que ocasionou o estrago.

Fique bem entendido: o colesterol LDL nas alturas, aquele capaz de formar placas nos vasos e desencadear verdadeiros obstáculos à passagem do sangue cheio de oxigênio, continua sendo uma causa nada desprezível desse perrengue.

Entre homens jovens, o entupimento das artérias provocado desse jeito, está por trás de 75% dos casos, ou seja, é o motivo de três em cada quatro infartos. Porém, nas mulheres mais moças, a proporção muda: as famigeradas placas são encontradas em apenas 47% dos ataques cardíacos, pouco menos da metade. E o restante dos casos, a maioria? Eles costumam ser classificados como "causas não tradicionais" — e ponto.

Mas, para a médica britânica Claire Raphael, cardiologista intervencionista da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, entender o que provocou o infarto é tão importante quanto cuidar de uma paciente na hora agá. "Se a causa raiz de um ataque cardíaco é mal interpretada, isso pode levar a tratamentos menos eficazes. Ou até mesmo prejudiciais", garante.

Ela é a principal autora de um estudo conduzido na Mayo Clinic para decifrar o mistério das tais causas não tradicionais dos infartos em pessoas mais jovens, especialmente nas mulheres. O artigo foi publicado na última segunda-feira, dia 15, no Journal of the American College of Cardiology.

O trabalho revela que, sob a alcunha de "causas não tradicionais", pode existir uma anemia forte ou até mesmo uma infecção. Mas elas ficam em segundo lugar. A maior culpada do ataque cardíaco em mulheres jovens é mesmo a DEAC, a dissecção espontânea da artéria coronária, algo que acontece com uma frequência seis vezes maior nelas do que nos homens da mesma faixa etária. E mora aí uma perigosa pegadinha.

Uma rachadura na coronária

A gente não costuma ouvir falar de DEAC. Por isso, pedi à doutora Claire Raphael uma explicação do que seria. "É uma condição realmente estranha", reconhece a médica. "O vaso é como um tubo, por onde a circulação passa. Às vezes, por uma razão desconhecida, surge uma espécie de rachadura na parede dessa tubulação. Com isso, fica um sangramento ao redor da artéria."

Parte do sangue, então, segue em frente, só que com menos força para abastecer o coração a contento — até porque outra parte escapa. E essa parte que escapa acaba formando um coágulo no lado externo. A bolota de sangue coagulad faz o quê? Aperta a artéria por fora, estreitando-a. Resultado: a passagem sanguínea torna-se bastante limitada. E, como chega menos sangue oxigenado para supri-lo, o músculo cardíaco reclama na forma de dor.

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Em algumas mulheres, a queixa não é exatamente de dor, mas uma sensação de aperto no peito. Elas podem, ainda, reclamar de um mal-estar na altura da boca do estômago, sentir cansaço e falta de ar ou até mesmo tontura.

"Às vezes, a pessoa estava fazendo um exercício físico muito vigoroso imediatamente antes da dissecção espontânea da coronária, mas nem sempre. O fato é que pode acontecer do nada e não sabemos o porquê", admite a cardiologista.

Por sorte, a maioria dos episódios de DEAC se resolvem sozinhos. "Isso, porém, leva de seis a oito semanas, um período que merece observação", diz a doutora Claire. "Costumo dizer que, mesmo que a mulher seja bem jovem, não fume, não tenha diabetes ou aparentemente nenhum outro fator de risco, ela deve procurar ajuda médica se nota esses sintomas. Sem ficar com aquela ideia de que 'sou saudável, não deve ser nada com o meu coração.' Muitas vezes, não é nada com ele mesmo. Mas, se for DEAC, precisaremos ficar de olho."

Pode ser que o fluxo sanguíneo fique tão prejudicado que, sim, os médicos precisem intervir e fazer algum procedimento para resolver o vaso parcialmente rompido antes de o coração infartar por falta de aporte sanguíneo. Porém, em muitos casos, a observação de perto basta.

Um recado importante é o seguinte: "Em cerca de 20% das pacientes que já tiveram um episódio de DEAC, o problema vai acontecer outra vez. Por isso, para aquelas mulheres que tiveram uma dissecção espontânea dessas, podemos prescrever remédios como betabloqueadores", conta. Ao diminuir o ritmo cardíaco e relaxar os vasos, a medicação ajuda a evitar novas rachaduras nas coronárias.

Só uma minoria continua sem explicação

No estudo, a doutora Claire Raphael e seus colegas se debruçaram sobre um tremendo banco de dados, com os registros de todo mundo que deu entrada em um hospital na região de Olmsted, cuja maior cidade é Rochester, onde fica a Mayo Clinic.

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"Buscamos por todas as pessoas com menos de 65 anos que tiveram um exame positivo para troponina ao longo de 15 anos, de 2003 a 2018", ela conta. A troponina é uma enzima que, quando se encontra aumentada no sangue, indica que o coração sofreu uma lesão. Mas nem sempre essa lesão é um ataque cardíaco. Ela pode ser resultado de uma infecção, por exemplo. Daí que os pesquisadores separaram o que tinha sido, de fato, um infarto. Para daí, entenderem quais casos foram provocados por placas nas artérias ou por DEAC e até mesmo quando eram consequência de outra doença.

Essa é uma diferença importante, segundo os autores: os trabalhos anteriores se contentaram em parar pela divisão entre causas tradicionais e causas atípicas, sem esmiuçarem direito estas últimas.

"Existem casos em que o paciente — homem ou mulher — está muito doente por causa de uma infecção grave ou de um trauma severo, por exemplo, Então, ele apresenta uma anemia forte ou, ainda, forma coágulos que entopem os vasos", explica a médica.

A ironia é que, em uma situação dessas, o corpo está fazendo de tudo para vencer o problema e necessitando de mais e mais oxigênio aumentar suas chances. "A demanda aumenta e o suprimento não é suficente", resume a cardiologista. "Nesse desequilíbrio, a pessoa sofre um ataque do coração."

Faz sentido, No final das contas, seja pelo coágulo que surgiu em função dessa outra doença, seja pela falta de glóbulos vermelhos levando oxigênio, o músculo cardíaco é capaz ficar na mão, sem oxigênio,

Esses fatores estressantes, como chamam os cardiologistas, foram a segunda causa não tradicional de infarto encontrada no estudo. E os danos que são capazes de provocar são tão importantes que 33% dos pacientes jovens — de novo, homens ou mulheres — morreram dentro de um períodode cinco anos. O coração deles nunca voltou a ser o mesmo.

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Os ataques cardíacos inexplicáveis foram raros. Raros mesmo: menos de 3% dos casos, depois que os pesquisadores revisaram cuidadosamente os exames de um por um.

Mais atenção às mulheres

Para a doutora Claire, infelizmente as mulheres não são levadas a sério quando sentem uma dor ou outro mal-estar qualquer no peito. "Ainda mais se são jovens e aparentemente muito saudáveis", lamenta. "E eu gostaria que elas tivessem a maior atenção possível ao apresentarem uma queixa ao cardiologista, mesmo que na maioria das vezes não seja nada demais."

Ela lembra que colegas Mayo Clinic pesquisam a DEAC, aquela rachadura na artéria tão mais comuns nas jovens, para ver se existira uma boa maneira de preveni-la. E até mesmo de flagrá-la — sim, há casos em que os médicos confundem essas lesões com placas nas artérias, prescrevendo tratamentos que não evitarão novos episódios.

Já a própria doutora Claire Raphael segue investigando artérias microscópicas do coração que, quando têm problemas, exames como o angiograma podem não denunciar. Quem sabe esteja aí a resposta para aqueles 3% que continuam sem explicação.

"E, de novo, as doenças microvasculares afetam mais mulheres, que são dois terços dos casos", conta a médica que, pelo visto, gosta mesmo é de um mistério, como os do coração feminino que sofre sem a gente entender o porquê. Quer dizer, agora entendemos bem mais.

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