Controlar o peso e o açúcar no sangue é um segredo para preservar a memória
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Não era a principal finalidade dos pesquisadores saber a quantas andava a memória dos mais de 9 mil participantes de um grande estudo, o SOUL.
O objetivo maior era outro: ver se pessoas com diabetes tipo 2 e doença renal ou cardiovascular teriam menos problemas graves e potencialmente fatais, como um infarto, se fossem tratadas com semaglutida oral, remédio que tanto melhora a ação da insulina quanto ajuda quem precisa enfrentar a obesidade.
Mas, vá lá, os cientistas resolveram fazer testes de memória em uma parte dos voluntários antes e depois do tratamento. Até porque o AVC (acidente vascular cerebral) e suas sequelas são uma ameaça real para essa gente e podem bagunçar a cognição de algumas vítimas.
No final, se acertar nos tais testes parecer mais fácil para quem recebeu o remédio, perdeu gordura corporal e ainda controlou direito a glicose no sangue, o trabalho, cujos resultados estão para sair, acabará reforçando uma hipótese que não é exatamente nova: manter a glicemia e o peso no prumo seria um bom caminho para o cérebro não sofrer déficits de memória.
Na verdade, o que vem sendo bastante investigado pela ciência mundo afora é mais do que a chance de melhorar a capacidade de memorização simplesmente, mas a possibilidade de esse ser um dos segredos para evitar ou retardar o aparecimento de demências, como o Alzheimer.
"Sem dúvida, a prevenção de demências foi um dos tópicos mais discutidos no congresso da ADA, a American Diabetes Association", observa o endocrinologista João Salles, ao voltar do evento realizado no final do mês passado em Chicago, nos Estados Unidos. Diretor do Departamento de Medicina da Santa Casa, em São Paulo, e presidente eleito da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), ele fez questão de acompanhar várias palestras sobre esse tema durante o evento.
Vale a pena entender essa história, tenha você diabetes ou não. Afinal, na medida em que a expectativa de vida da humanidade vem aumentando, surge a clareza de que não basta viver muitos anos — queremos manter uma existência cheia de (boas) recordações.
Insulina e cérebro
Cerca de 1% dos casos de Alzheimer não existiria se o diabetes tipo 2 sumisse do mapa. E outro 1% seria evitado se nenhuma pessoa na face da Terra tivesse obesidade. O cálculo foi feito por um estudo de tirar o fôlego publicado ano passado na revista The Lancet, avaliando os fatores de risco evitáveis desse mal neurodegenerativo.
Parece pouco, mas só no Brasil seriam 2.000 pessoas a menos com Alzheimer a cada ano. E, se obesidade e diabetes tipo 2 — aquele que tem a ver justamente com o excesso de gordura — funcionam como um empurrãozinho não só para essa doença, mas para outros tipos de demência e, bem provável, até para déficits de memória casuais, é porque essas duas condições envolvem dificuldades com a insulina.
A gente sempre descreve esse hormônio produzido pelo pâncreas como uma chave capaz de destrancar as portas das nossas células para a entrada da glicose que está no sangue.
No entanto, em quem tem excesso de gordura, especialmente aquela acumulada no abdômen, ou em pessoas que já apresentam diabetes tipo 2, há uma baita resistência das células a essa substância, como se a fechadura delas começasse a dar problema. Então, a glicose termina ficando do lado de fora, isto é, na corrente sanguínea.
O pâncreas, de seu lado, aos poucos vai se cansando de liberar insulina extra para tentar compensar essa situação. Com o tempo, a linha de produção desse hormônio fica totalmente prejudicada. A "fábrica" começa a entrar em falência.
O curioso é pensar que isso afetaria o sistema nervoso central. Afinal, os neurônios cerebrais são uma bela exceção: "A glicose não depende da insulina para entrar neles, que usam um outro mecanismo para obtê-la", ensina o doutor João Salles.
Faz sentido o cérebro ser assim tão independente: ele precisa desse açúcar de montão. Estima-se que use, sozinho, metade da glicose disponível na circulação de um indivíduo saudável para dar conta de sua trabalheira.
Só que, como o doutor Salles mesmo lembra, nem por isso a insulina deixa de ser importantíssima para o bom funcionamento cerebral. "Ela participa do sistema de aprendizado e memorização, facilitando o trabalho dos neurônios", conta. "Esse hormônio age nas sinapses, isto é, na troca de informações entre as células nervosas. Digamos que, na presença dele, elas conversariam mais entre si." Sem contar que a insulina também teria uma ação neuroprotetora muito bem-vinda.
A inflamação conta
"Há, ainda, o excesso de glicose no sangue, que lesiona os vasos", acrescenta o doutor Salles. "Isso eleva o risco da chamada demência vascular." É quando o cérebro vai perdendo neurônios por falta de abastecimento adequado de sangue.
Para completar, segundo o endocrinologista, as substâncias inflamatórias produzidas tanto pelo acúmulo de gordura no corpo quanto pelos níveis altos de glicose no sangue conseguem atravessar a bendita barreira hematoencefálica, que a rigor serviria para controlar o que pode entrar no nobre território cerebral. Mas, nessas horas, esse sistema de segurança falha. E, acredite, um cérebro inflamado pode acabar não se lembrando bem das coisas.
Quem deveria tomar mais cuidado?
O doutor João Salles é categórico: "Não posso dizer que obesidade e diabetes causem demências, mas nitidamente fazem perdas de memória avançarem mais depressa".
Daí que o recado do endocrinologista é aquele antigo: prevenir, controlando a balança e reparando nos níveis sanguíneos de glicose apontados no check-up, sem menosprezar quando estiverem acima do normal, mesmo que "só" indiquem o tal do pré-diabetes.
Para quem já tem diabetes pra valer, bom saber de um estudo que gerou zunzunzum no congresso da ADA. Ele foi apresentado por Zhongyu Li, pesquisadora da Emory University, em Atlanta.
Com seus colegas, a cientista avaliou ao longo de dez anos dados de nada menos do que 727.076 pessoas que, no início da investigação, tinham sido recém-diagnosticadas com diabetes tipo 2. Será que todas elas corriam o mesmo risco de desenvolver demências?
Os participantes foram divididos entre aqueles que já apresentavam falta de produção de insulina; pessoas com um diabetes leve relacionado ao excesso de peso; indivíduos com um diabetes leve que surgiu ao se tornarem idosos e, por fim, casos mistos, como o de quem tinha idade avançada e obesidade ao mesmo tempo.
"A conclusão foi que ser idoso ou já ter falta de insulina faz crescer mais o risco de demência vascular do que ter uma resistência ainda leve a esse hormônio, por exemplo", resume o doutor Salles. "Porém, no que diz respeito ao Alzheimer, todos os subtipos de diabetes parecem ser igualmente importantes para aumentar a ameaça. E a gente fica pensando: será que existe algum tratamento para prevenir a progressão dessa doença?"
O médico lança a pergunta, mas sabendo que a resposta poderá chegar em dezembro deste ano, quando serão divulgados os resultados de um estudo com pacientes tratados com semaglutida que exibiam os primeiríssimos sinais de Alzheimer.
O que se busca saber é se a droga evitaria o avanço do apagão das memórias, inclusive com a possibilidade de, independentemente de qualquer coisa, diminuir a inflamação cerebral. Tomara, porque isso, sim, seria inesquecível.
*A colunista viajou para a cobertura do congresso da American Diabetes Association a convite da Novo Nordisk.
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