CagriSema: a combinação de dois remédios com ótimos resultados no diabetes
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Na era em que as canetas para tratar diabetes e obesidade sempre viram assunto para o bem e para o mal, o que a tão falada semaglutida faz você provavelmente já sabe.
Mas vamos recapitular: ao imitar um tal de GLP-1 e se encaixar nos mesmíssimos receptores desse hormônio produzido no intestino, ela aumenta a saciedade e melhora os níveis de glicose no sangue.
Mas do que será que a "sema", para os íntimos, seria capaz se estivesse ao lado de uma tal de cagrilintida na mesma canetinha? Essa pergunta começou a ser respondida no domingo (22), terceiro dia do ADA, o congresso da American Diabetes Association, em Chicago, nos Estados Unidos.
Ali, no exato instante em que também saíam no New England Journal of Medicine, foram divulgados os resultados dos estudos REDEFINE 1 e REDEFINE 2.
Ambos são fase 3 e a Novo Nordisk, farmacêutica de origem dinamarquesa que uniu as duas moléculas em um medicamento só, deve entrar com o processo de aprovação do novo tratamento no início do ano que vem.
O REDEFINE 1 viu o efeito da dobradinha que está sendo chamada de CagriSema em 3.217 pessoas com sobrepeso ou obesidade e pelo menos uma complicação de saúde relacionada ao excesso de gordura, mas — atenção! — sem diabetes.
Direto ao ponto: 40,4% dos indivíduos tratados com a união das duas substâncias perderam 25% do peso inicial ou até mais do que isso. Daí que você pode imaginar aquele clima de "ohhh" na sala lotada do evento americano.
No entanto, ao meu ver o que mais impressionou foram os resultados do REDEFINE 2 — este, um estudo com 1.206 pessoas com excesso de peso, mas que tinham diabetes.
Como foi o segundo estudo
Antes de mais nada, os participantes foram sorteados, ou randomizados no linguajar da velha e boa ciência. Pois bem: 302 indivíduos, sem fazerem a menor ideia disso, receberam uma canetinha com placebo, que parecia remédio, mas não era nada. Já 904 pessoas, a maioria, caíram no grupo que recebeu canetinhas para aplicar semanalmente CagriSema.
Nelas, havia 2,4 miligramas de semaglutida, aquela dosagem já aprovada para perda de peso no remédio contra obesidade que contém essa mesma molécula e que está nas nossas farmácia. Outros 2,4 miligramas eram de cagrilintida.
Todos, tanto em uma turma quanto na outra, foram orientadas a seguir uma alimentação equilibrada e a fazer exercício físico. Isso era inegociável.
No início da pesquisa os participantes estavam com IMC (índice de massa corporal) acima de 27 kg/m2. Portanto, tinham sobrepeso ou obesidade. E, no caso, a hemoglobina glicada deles estava entre 7% e 10%.
A hemoglobina é a proteína encontrada nos glóbulos vermelhos. Se há muita glicose no sangue, parte desse açúcar gruda nela que, daí, fica "glicada." Uma proporção de 6,5% de hemoglobina desse jeito, digamos que melecada de açúcar, já indica diabetes. Logo, todos os participantes do estudo tinham esse diagnóstico.
No entanto, aquele ditado "a união faz a força" cabe direitinho aqui: 4 em cada 10 pessoas no grupo da CagriSema ficaram com a glicemia absolutamente normal depois de 68 semanas de tratamento.
Outros resultados impressionantes
Nesse período, a pressão sistólica caiu, em média, incríveis 7,6 mmHg (milímetros de mercúrio) entre aqueles que usaram a semaglutida ao lado da cagrilintida. A queda ficou em torno de apenas 2,2 mmHg (milímetros de mercúrio) no grupo placebo, que usou remédio falso, só que fazendo exercício e se alimentando de maneira mais saudável.
Essa redução merece ser destacada porque o diabetes tipo 2 costuma levar à hipertensão, reforçando a ameaça que essa doença já faria ao coração por si só.
Aliás, os níveis de triglicérides na circulação despencaram 32,7% contra 8,2% no grupo do placebo. E os de VLDL — a lipoproteína de muito alta densidade, uma espécie de colesterol ainda mais malvada que o LDL — diminuíram cerca de 32% entre os que aplicaram a medicação contra 7,8%, em média, entre os que não a usaram. Por sua vez, o HDL, aquele que é considerado o colesterol bom, subiu 14,1%. Na turma do placebo, ele só aumentou 3,8%.
O outro lado da moeda são os efeitos gastrointestinais, que 8 em cada 10 participantes que aplicaram a parceria CagriSema sentiram. Mas, garantem os pesquisadores, eles foram leves ou moderados, diminuindo com o tempo na maioria dos casos.
A questão do peso
Quando os participantes que aplicaram o medicamento com as duas moléculas subiram na balança no final do estudo, o peso estava 13,7% menor. A redução foi de 3,4% no grupo do remédio falso.
Ainda assim, em um primeiro momento pareceu pouco para quem tinha acabado de assistir à apresentação daquele primeiro estudo, em que pessoas com sobrepeso e obesidade, mas sem diabetes, tinham emagrecido bem mais.
Ao microfone, os autores garantiram que não. Aliás, disseram que a dupla semaglutida e cagrilintida foi a que mostrou, até o momento, os melhores resultados em pacientes com diabetes tipo 2 em apenas 68 semanas.
Quem conta essa história um pouco melhor é o endocrinologista João Salles, que estava por lá. Diretor do Departamento de Medicina da Santa Casa, em São Paulo, e presidente eleito da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), ele afirma que o organismo de quem tem diabetes é muito mais inflamado. "Inclusive, essa inflamação atinge o hipotálamo, área do nosso cérebro que regula a fome, a saciedade e a forma como o organismo gasta energia", diz. "Por isso, há uma dificuldade maior para emagrecer e manter o novo peso."
Afinal, o que é a tal cagrilintida?
Assim como a semaglutida vai agir nos receptores do hormônio GLP-1, a cagrilintida agirá tal e qual a amilina, um outro hormônio produzido pelo pâncreas.
"Normalmente, sua liberação acontece na presença de comida. Entre outras coisas, isso avisa o organismo que já pode parar de se alimentar, inibindo o apetite e tornando mais lento o esvaziamento do estômago", explica o professor Salles. "Essa ação é basicamente no cérebro."
A amilina também alerta outra célula do pâncreas para que não descarregue o glucagon, hormônio que faz o contrário da insulina, aumentando os níveis glicose no sangue.
Reversão do pré-diabetes
A amilina — ou vá lá, a cagrilintina fazendo as vezes dela — é ainda capaz de incentivar as células pancreáticas a incrementarem a produção de insulina, tirando esse açúcar de circulação, só quem sem estressá-las ainda mais.
É que, segundo o professor João Salles, geralmente essas células ficam fatigadas pela infiltração de gordura no próprio pâncreas. Decididamente, ali não é um lugar apropriado para a gordura estar. Mas ela vai parar no endereço errado quando alguém engorda demais, o que deixa as tais células beta produtoras de insulina irritadiças. "Na verdade, quando o diagnóstico de diabetes tipo 2 é feito, cerca de 70% dela já estão transformadas em outro tipo de célula, deixando de trabalhar."
É como se jogassem a toalha no chão. "Esse é o motivo por que a perda de gordura corporal promovida pela medicação é tão importante. Com isso, essas células do pâncreas podem ir retomando seu antigo comportamento, voltando aos poucos a ser o que eram", ele conta.
De acordo com o estudo, outra aparente vantagem da CagriSemana diz respeito à hipoglicemia, quando os níveis de glicose no sangue descem perigosamente ladeira abaixo. Para alegria geral, as crises hipoglicêmicas foram bem raras.
O professor Salles explica que isso acontece porque a cagrilintida da medicação estudada age de maneira inteligente. "Ela pede para o pâncreas produzir insulina apenas quando a glicose sobe ", diz ele.
O endocrinologista faz questão de retomar um detalhe importante do primeiro trabalho, o REDEFINE 1, em que uma parcela de pacientes tinha pré-diabetes, isto é, uma hemoglobina glicada entre 5,7% e 6,4%.
Calcula-se que entre 40 e 50 milhões de brasileiros vivam nessa condição. "E, ao contrário do que o nome dá entender, o pré-diabetes também é uma doença", lembra o médico.
A CagriSema, porém, normalizou a glicemia da maioria participantes com pré-diabetes. Precisamente, de 93% dos indivíduos, evitando que, mais dia, menos dia, eles recebessem a notícia azeda de apresentarem o diabetes tipo 2 pra valer, doença silenciosa que trai a vida de tantos pelas costas.
*A colunista viajou para a cobertura do congresso da American Diabetes Association a convite da Novo Nordisk.
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