Lúcia Helena

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Reportagem

Angina: quando a dor era de um infarto que ninguém enxergava

Surge do nada o desconforto, uma dor que pode não estar sozinha ou nem ser bem dor, dando a sensação de um aperto, um puxão que não larga o seu corpo, um "enjoo" fora de lugar.

Então a pessoa faz exames, quem sabe até bastante sofisticados, como uma angiografia ou o clássico cateterismo, mas o médico não vê nada de errado nas artérias do seu coração. Daí, ela volta para casa com três tapinhas nas costas. Teria sido um susto, nada demais.

Às vezes, na saída do pronto atendimento, mais uma mulher acaba sendo tachada de paranoica, depressiva, alguém querendo chamar atenção. Enfim, os horrores de sempre. Não que os homens estejam a salvo, mas é que, ninguém sabe o motivo, isso acontece em mulheres em 60% ou 70% das vezes. E "isso" é um infarto, sim. Um infarto pra valer.

O que ninguém via

Até a chegada de uma nova plataforma incorporada ao exame de cateterismo ninguém enxergava esse infarto. Desenvolvida pela Abbott — empresa americana que está entre as líderes globais em soluções médicas — e batizada de CoroFlow, a tal plataforma foi aprovada recentemente pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O primeiro procedimento no país realizado com ela aconteceu no mês passado, no dia 14 de maio, em uma paciente de 56 anos atendida no Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo.

Ficou claro que seu mal-estar era, de fato, uma belíssima angina, que é a forma como o coração reclama quando está mal-abastecido de oxigênio e nutrientes para dar conta da trabalheira de bater sem parar.

No entanto, o entrave ao fluxo sanguíneo não estava em suas grandes artérias, as coronárias, que seriam vasculhadas com facilidade pelo cateterismo feito sem essa nova tecnologia. O problema estava na microcirculação do epicárdio, a camada mais externa e superficial do coração, irrigada por inúmeros, porém minúsculos, vasos.

Nem sempre um infarto é como se imagina

"Nem todo o infarto acontece do jeito clássico, quando o indivíduo sente algo, cai duro e pode até nunca mais voltar", diz o cardiologista Louis Nakayama Ohe, chefe da hemodinâmica do Dante Pazzanese e responsável pelo procedimento de estreia da nova plataforma no Brasil. "Muitas vezes, o infarto acontece por debaixo dos panos."

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Nos microvasos do epicárdio, diga-se, um infarto aparentemente não mata. Alguns médicos até ousam falar em condição benigna. Ao repetir essa expressão, o doutor Ohe franze a testa sem disfarçar o desgosto. "Em um filme do Woody Allen", diz ele, citando o cineasta e ator americano, "o personagem fala que uma frase mais bonita que 'eu te amo' seria 'esse problema é benigno'".

Depois de lembrar do filme, o médico dispara: "De benigno, contudo, o infarto na microcirculação do epicárdio não tem nada. Até porque, em torno de 25% dos pacientes voltam a ter sintomas, correndo para o pronto-socorro. E, pior, os estudos mostram que essa gente morre um pouco mais do coração do que a população que nunca teve algo parecido". Portanto, ele sabe que o "sintoma benigno" pode esconder uma questão de tempo.

Por dentro dos vasos

O doutor justifica: "Um vaso sanguíneo não é um cano de PVC, um tubo fixo por onde corre um líquido. Ele é vivo e seria mais adequado compará-lo com um rio." Nesse "rio", a delicada membrana interna chamada de endotélio seria como um musgo, com toda uma riqueza e complexidade, capaz de ter seu equilíbrio afetado por fatores como mudanças no clima, excesso de gorduras no sangue, consumo exagerado de álcool, substâncias nocivas do tabaco...

"Devemos entender que, se por qualquer desequilíbrio, essa camada não funciona direito nos pequenos vasos, o mesmo fenômeno provavelmente está se iniciando nos vasos maiores. É preciso ficar esperto", alerta o cardiologista.

Segundo ele, nos microvasos o endotélio doente ainda faz uma enorme confusão. Diante de um susto ou uma situação de forte estresse, ele produz menos óxido nítrico, substância que iria provocar um relaxamento local e alargar o caminho do sangue. Ao contrário disso, os microvasos se contraem, tornando a circulação mais lenta.

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Uma coisa é certa: isso provoca angina. "Ela é igual, não importa se a queixa vem de uma artéria maior ou de um desses vasinhos, onde não conseguíamos confirmar se havia um obstáculo", informa o cardiologista do Dante Pazzanese. "É impossível discernir a sensação de um infarto clássico, mesmo quando há a obstrução total de uma coronária, daquela de um infarto provocado pelo chamamos de doença microvascular do coração."

O coração sempre se queixa para o vizinho

A angina, aliás, nem sempre é uma dor no peito. "Brinco com meus pacientes que cada um tem a sua", conta o doutor Ohe. A queixa de um coração sofrido pode surgir na forma de falta de ar, de tontura, de uma fisgada nas costas, de um embrulho no estômago, de uma dor no dedo da mão!

Pense no coração como uma pessoa que passa mal, mas que está isolada em um apartamento, sem celular, nem computador. Isso porque o músculo cardíaco, em si, não tem receptores para soar o alarme de sinais dolorosos quando lhe acontece algo ruim.

"Para ele, só existe uma saída: pedir socorro aos vizinhos", diz o médico. "É o que o coração infartando faz". E, no embrião no ventre materno, sua vizinhança veio do mesmo grupo de células. Os pulmões, claro, estão mais próximos — na porta ao lado, digamos assim. Daí a eventual sensação de sufoco. O braço, a mão e seus dedos também podem ouvir o desespero vindo do peito.

"Mas, atenção, do queixo até a barriga, incluindo os braços, todos são primos do coração e podem escutar os berros da angina", resume o doutor Ohe. Certa vez, ele recebeu um paciente com tanta dor na mandíbula que dizia ter impressão de que seu queixo estava sendo arrancado. Era infarto.

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"Bem mais comum é uma dorzinha incessante, diferente daquela de uma amigdalite, que brota no fundo da garganta", conta. Só que, às vezes, apesar da suspeita de que a pessoa está infartando, ele e seus colegas não encontravam nada, nada.

Por que o problema era invisível

O doutor Louis Ohe explica que a Medicina passou a lançar mão do cateter para visualizar as artérias do coração ainda na década de 1960 e houve uma enorme evolução desde então. "Mas, entre nós, pouca coisa progrediu nos últimos vinte anos", opina.

Isso porque os médicos conseguiam enxergar vasos estreitos e pequenos, desde que não passassem de 1,5 milímetro. "Menores do que isso? Aí, só desconfiaríamos de danos ao músculo cardíaco causados por microvasos doentes, mas sem termos prova disso", afirma.

Existem outros exames de imagem. Mas eles tampouco esclareciam a dúvida. A angiografia, por exemplo, usa raios-X para captar a vascularização cardíaca. Mas ela flagra bloqueios apenas nas grandes artérias.

Outros métodos, como a ressonância magnética e a PET-CT, a tomografia por emissão de pósitrons, levantariam a hipótese de algo estranho, mas não diferenciariam um fluxo sanguíneo emperrado de um pontinho de infecção ou de gordura no vaso.

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Diferença de temperatura

Há mais de uma década, os médicos brasileiros vinham usando um cateter desenvolvido pela Abbott que, quando apareceu, já era inovador pela espessura — literalmente a de um fio de cabelo — e principalmente por ser equipado com um dispositivo capaz de medir a pressão dentro das coronárias ao fazer o seu passeio por elas durante o exame.

"Acontece que os cientistas também tinham colocado um termostato dentro desse fio", conta o doutor Ohe. "O grande avanço que isso representava ficou evidente agora. A plataforma seria uma espécie de upgrade. Trata-se de um equipamento instalado próximo ao local do exame que analisa o fluxo dos pequenos vasos pela diferença de temperatura."

Como? Para a gente entender, o médico apela para uma xícara quente. "Quanto mais rápido e forte você soprá-la, mais rápido o líquido dentro dela irá esfriar, correto?" Corretíssimo!

"Pois bem, durante o exame, eu posiciono o cateter na desembocadura das pequenas artérias do epicárdio", continua o médico. "Ali, jogo um soro frio. Se ele retorna ainda gélido, é sinal de que circulou depressa pelos microvasos."

Entendo: já quando o soro retorna mais quente, isso indica que demorou para passar, a ponto de, digamos, ser aquecido pelo coração. "Incluir a plataforma é relativamente barato e os médicos brasileiros já têm farta experiência em fazer cateterismo com esse fio, dispensando treinamento", comenta o doutor Ohe.

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Se o diagnóstico é confirmado

Com a confirmação de uma circulação prejudicada nos minúsculos vasos do epicárdio, ninguém mais voltará para casa com tapinhas nos ombros e a mensagem de que não era nada.

Existem até remédios para melhorar a circulação por ali. Mas, como o perrengue pode ser o prenúncio daquele infarto maior e mais temido — ora, o endotélio adoecido reveste vasos de todos os tamanhos —, a ordem será redobrar os cuidados com o coração, com atividade física, controle do estresse, alimentação saudável e disciplina rígida em relação ao que o cardiologista prescrever.

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