Lúcia Helena

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Reportagem

Fibrose pulmonar: finalmente um novo remédio para pulmões enrijecidos

Nos últimos dez anos, foram 17 ensaios clínicos internacionais, realizados por farmacêuticas diferentes atrás de um novo remédio para desacelerar a formação de cicatrizes nos pulmões. Para muitos pacientes com fibrose pulmonar, elas surgem sem uma explicação que a ciência consiga enxergar por enquanto. É, sim, um diagnóstico de tirar o fôlego.

"Nosso grupo, no Brasil, participou de pelo menos metade dessas pesquisas", conta o pneumologista Adalberto Rubin, professor da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) e chefe do Serviço de Pneumologia da Santa Casa de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mas sinto dizer: todas essas 17 tentativas deram em água.

Qualquer novidade era muito aguardada porque 30% das pessoas com fibrose pulmonar simplesmente não suportam os efeitos colaterais dos tratamentos existentes até o momento.

"Eles incluem fortes enjoos, crises de vômito, episódios de diarreia. Lembram as reações de uma quimioterapia agressiva", diz o professor. Sem tratamento, porém, ninguém sobrevive mais de três anos sem um transplante.

Agora, finalmente veio a boa notícia. Uma molécula desenvolvida pela Boehringer Ingelheim, companhia de origem alemã, que já tinha comprovado sua segurança, exibiu excelentes resultados em estudos com mais de 2.000 pacientes de 30 países

Em dois artigos publicados em maio na revista The New England Journal of Medicine, a nerandomilaste mostrou ser capaz de aumentar a capacidade dos pulmões de se encherem de ar nas duas formas existentes de fibrose nesses órgãos — um desafio nada fácil quando eles estão repletos de cicatrizes.

À espera de aprovação

Esses estudos deram respaldo para a nerandomilaste ser submetida à aprovação nos Estados Unidos, na União Europeia, na China e em outros países. "Assim que ela for aprovada pelos europeus ou pelos americanos, seguirá para a Anvisa, a nossa Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que já se comprometeu a acelerar o processo por ser uma doença rara e, portanto, prioritária", informa o professor.

Por doença rara, entenda: de cada 100 mil brasileiros, entre 14 e 43 terão fibrose pulmonar.

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Com causa conhecida ou desconhecida?

Há duas formas de fibrose pulmonar. Uma delas é a progressiva ou FPP, nome esquisito porque a outra também progride — e como progride! Seja lá como for, a grande diferença é que esse tipo tem uma causa conhecida. "Pode ser uma doença autoimune como a artrite reumatoide e o lúpus e, aí, controlar essa condição já ajuda a frear o processo da fibrose", explica o professor Rubin.

Infecções pulmonares, como quadros graves de covid-19 e pneumonia, também servem de estopim. Portanto, manter a vacinação em dia ajuda a evitar o declínio da capacidade de respirar. Ainda pode entrar na lista uma hipersensibilidade à inalação de substâncias tóxicas. "Se descobrimos o que está por trás a fibrose, podemos afastar essa causa e controlá-la melhor", afirma o pneumologista.

O maior desafio, então, é a FPI e este "i" vem do termo "idiopática", usado pelos médicos quando não sabem por que um raio está caindo em nossas cabeças. Quero dizer, quando não conseguem apontar por que determinada doença apareceu.

Cigarro? Longe de mim defendê-lo! "No entanto, nessa doença, o risco entre os tabagistas é só ligeiramente maior", garante o professor Rubin.

Na prática, se nada é feito, o pulmão fica tomado de cicatrizes em ambas as formas, a progressiva e a tal idiopática.

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Elasticidade é tudo!

A cicatriz é o remendo do nosso organismo quando um de seus tecidos é lesionado. E, como todo remendo, nunca sai igual ao original. Ele é invariavelmente menos elástico em qualquer parte do corpo. Nos pulmões, porém, isso é uma lástima.

Ora, o tecido pulmonar precisa se esticar a cada inspiração, abrindo espaço para o ar oxigenado. Na sequência, ele se contrai inteiro para expulsar o ar com gás carbônico, nas famosas trocas gasosas. Só que, com o acúmulo de fibroses, outro jeito de chamar as cicatrizes, esses órgãos ficam cada vez mais enrijecidos. "Quase petrificados", diria o professor Rubin.

Daí, a capacidade de captar oxigênio diminui gradualmente. Logo vem a falta de fôlego e o cansaço, muitas vezes acompanhados de uma tosse seca de quem não dá conta desse entra-e-sai do ar.

Os sintomas costumam surgir lá pelos 50, 60 anos, o que acaba sendo um complicador. Isso porque muita gente acha normal ter menos fôlego na medida em que envelhece.

É fato que, nessa faixa etária, o indivíduo passa a perder de 30 a 65 mililitros da capacidade dos pulmões a cada ano. No entanto, em quem tem fibrose pulmonar a redução dessa capacidade vai de 150 a 280 mililitros por ano. Uma derrocada incomparável.

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Como é feito o diagnóstico

Como sempre, o diagnóstico começa com a história do paciente. "Mas o exame de tomografia computadorizada é essencial para a confirmação, embora em alguns casos a gente precise completá-lo com uma biópsia, quando a imagem não revela com exatidão se é essa doença ou outra", explica o professor.

Uma dúvida assim só aparece em menos de 10% dos pacientes. Na maioria das vezes, a imagem da tomografia é clara: "De cara, a gente nota que os pulmões têm um tamanho diminuído", conta o pneumologista.

Faz sentido: enrijecidos, eles encolhem. E o volume reduzido aparece dos dois lados. Não existe fibrose pulmonar só no pulmão esquerdo ou só no direito. As cicatrizes se espalham pelos dois.

A segunda característica típica dessa fibrose é a visão de um monte de buraquinhos que deixam os pulmões parecendo dois favos de mel. Mas o que está por trás disso não é nada doce.

O tratamento até agora

Na fibrose pulmonar progressiva, o que impera é um processo inflamatório forte, como se as células imunológicas atiçadas por outra doença autoimune, por uma infecção ou por uma substância tóxica resolvessem mirar nesse par de órgãos. E as lesões provocadas por esses ataques geram cicatrizes.

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Já na idiopática, o que predomina é uma proliferação exagerada de fibroblastos, células que produzem colágeno e elastina e que entram em ação pra valer na formação de qualquer cicatriz.

"Temos fibroblastos nos tecidos de todos os órgãos do corpo", lembra o professor Rubin. "Só que, no pulmão, por algum mecanismo desconhecido, eles podem se multiplicar em maior quantidade e serem mais ativos."

Segundo o médico, além de fisioterapia respiratória, vacinação em dia e adoção de um estilo de vida saudável, são usadas medicações antifibróticas, cuja função é desacelerar a cicatrização indesejada. Mas é aquela história: os efeitos colaterais beiram o insuportável para boa parte dos pacientes.

"Traçando um paralelo, se uma pessoa tem uma cicatriz que a incomoda na pele, ela pode tentar uma cirurgia plástica para removê-la ou essa marca ficará lá para sempre. Bem, a 'plástica', no caso dessa doença, seria transplantar um pulmão inteiro", ele explica.

O diferencial do novo tratamento

Os estudos que receberam o nome FIBRONEER se dividem em dois braços. Um deles reuniu pacientes com fibrose progressiva e outro, indivíduos com a forma idiopática. Por isso saíram dois artigos na revista científica.

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Em ambas as pesquisas, as pessoas foram sorteadas para cair em um de três grupos. Os que ficaram no primeiro deles receberam comprimidos com uma dose menor, de 9 miligramas, da nerandomilaste. Na segunda turma, a dose foi de 18 miligramas — no final, o efeito foi ainda mais notável nessa dosagem mais alta. O terceiro grupo recebeu um remédio falso. E ninguém sabia quem estava tomando o quê.

Após 52 semanas, a capacidade pulmonar dos que tomaram a nerandomilaste tinha aumentado, apesar de as cicatrizes continuarem por lá. E outra boa revelação: o risco de mortalidade diminuiu até 52%, ao menos no período de tratamento com a nova droga.

Ela, na verdade, age em um par de enzimas. Uma delas é a PDE4, se gosta de saber de siglas, que está relacionada a processos inflamatórios. A outra é a PDE4B, envolvida com a formação das tais fibroses, mas exclusivamente nos pulmões. Ou seja, não mexe com esse processo da cabeça aos pés e, até por isso, causa menos efeitos adversos. Ainda assim, há relatos de diarreia.

"O fato de a nerandomilaste ser tanto anti-inflamatória quanto antifibrótica faz com que ela possa ser aplicada para as duas formas de fibrose pulmonar. Isto é, na progressiva, que tem mais a ver com inflamação, e na idiopática, estabilizando o surgimento de cicatrizes", afirma o professor Rubin.

Na opinião do médico, esse remédio não só atenderá as pessoas que largaram o tratamento por causa dos efeitos colaterais. Também poderá servir de "plano B", quando os antifibróticos forem perdendo o efeito, o que é observado com o uso prolongado. Em muitos sentidos, isso significará literalmente um fôlego extra.

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