Lúcia Helena

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Reportagem

Parkinson: nova terapia injeta remédio sob a pele durante 24 horas do dia

Se a gente tiver a sorte de viver à beça, alcançando uma idade próxima de centenária, provavelmente as mãos ficarão ligeiramente trêmulas — esta, aliás, é a imagem das mãos de idosos muito longevos. A explicação é simples: lá no cérebro, as células produtoras de dopamina, neurotransmissor que participa do controle dos movimentos, vão morrendo antes de nós.

O problema de cerca de 10 milhões de pessoas ao redor do mundo — por baixo, 200 mil delas no Brasil — é que esses neurônios morrem muito, mas muito precocemente. Às vezes, na faixa dos 50 anos já foram perdidos montes deles. Sem que a ciência conheça bem a razão, essas pessoas têm a doença de Parkinson.

Na falta de dopamina, é como se o corpo não escutasse direito o comando para se mexer. Ele trava. Ou as ordens para se movimentar chegam descoordenadas e sem motivo. E, aí, ele treme.

O tratamento se baseia em engolir levodopa, ou simplesmente L-dopa, substância que atravessa a barreira do cérebro e, uma vez em seu interior, se converte em dopamina Só que, infelizmente, de dois a cinco anos após o diagnóstico de Parkinson, metade dos pacientes precisa aumentar cada vez mais a dose e a frequência dessa medicação para obter algum efeito. Depois de uns dez anos de a doença ser flagrada, isso acontece em quase a totalidade dos casos.

A saída, então, pode ser cirúrgica: implantar um dispositivo no cérebro para estimular a produção de dopamina direto na fábrica, por assim dizer. Mas nem todo mundo quer ser operado. E mais: uma parte dos indivíduos nem sequer tem condições para enfrentar o procedimento cirúrgico.

Por enquanto, é para eles a indicação de uma nova terapia aprovada pela FDA (Food and Drug Administration), nos Estados Unidos, praticamente na virada deste ano e que, agora, se encontra submetida à nossa Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Ela já está liberada, diga-se, em 35 países e sendo usada por mais de 4 mil pacientes.

Pela primeira vez, os cientistas conseguiram entregar ao organismo durante as 24 horas do dia, sem interrupções, uma dupla de substâncias que se transforma em dopamina no cérebro, a foscarbidopa e a foslevodopa.

Ela é infundida continuamente sob a pele, por uma finíssima cânula introduzida na região do abdômen, a qual fica ligada a uma espécie de bomba do tamanho de um velho rádio de pilhas, presa com um cinto. Esse dispositivo é que controla a dose a cada instante.

"E essa dose é customizada", explica a neurologista Cindy Zadikoff, diretora médica sênior de Desenvolvimento Clínico em Neurociência da AbbVie, farmacêutica americana que, depois de muita pesquisa, desenvolveu a novidade.

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"O médico pode regular para infundir uma quantidade menor da medicação ao longo da madrugada, enquanto a pessoa dorme", exemplifica a médica. "E pode aumentá-la naqueles momentos do dia em que ela costumava apresentar maior dificuldade motora."

O desafio da dopamina

Filha de um neurologista clínico, Cindy Zadikoff relutou em seguir os passos paternos até descobrir o universo dos distúrbios do movimento, entre eles o Parkinson. Passou mais de quinze anos atendendo pacientes com essa doença, conhecendo o seu drama, até entrar na AbbVie, em 2019.

"Com a progressão do Parkinson, o tempo em que a droga age no organismo se torna curto e para piorar, paralelamente, o cérebro está produzindo menos e menos dopamina", explica a doutora. Ou seja, a oferta diminui enquanto a demanda aumenta.

"Imagine o que acontece na madrugada, já que obviamente o paciente não toma seus comprimidos dormindo", diz Cindy Zadikoff. É o seguinte: ao acordar, o corpo parece congelado e leva longos minutos até realizar qualquer movimento. É o que os especialistas chamam de "off matinal". No jargão do Parkinson, os pacientes alternam períodos "on", quando o corpo responde a comandos, e momentos "off", quando parece estar desligado.

"Tenho o hábito de caminhar com meus cachorros logo cedo. E sempre me comovia porque via que meus pacientes que não podiam fazer o mesmo pelas manhãs", relembra a doutora. "Aliás, quem tem Parkinson se sente inseguro para aceitar um passeio, um jantar fora, uma reunião de trabalho. Afinal, os momentos 'off' são imprevisíveis."

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Segundo a neurologista, além da duração cada vez menor do efeito do remédio oral, há um detalhe: o Parkinson não atrapalha apenas os movimentos que podemos ver. "A motilidade do aparelho digestivo também sai prejudicada", informa. "Com isso, a absorção do medicamento ingerido vai deixando de ser a de antes. Você pode engolir determinada dose e estar, na prática, absorvendo uma quantidade bem inferior."

Para um efeito contínuo

As primeiras tentativas de entregar um medicamento para o Parkinson continuamente foram por meio de um tubo capaz de derramá-lo direto no estômago. "Isso ainda está disponível em alguns centros", diz a doutora. "No entanto, embora possa funcionar, usando uma tecnologia semelhante àquela empregada em pacientes que só se alimentam por sonda, essa saída implica em cirurgia. Sem contar que existe a perda de parte do remédio que, por ser uma proteína, termina sendo quebrado no estômago."

Daí que os cientistas da AbbVie procuraram evitar a passagem por esse órgão. Fizeram testes com a medicação subcutânea sendo infundida em várias regiões do corpo para ver se fazia diferença. Os estudos para atestar sua segurança foram realizados em diversos países e, nessa etapa, os pacientes ficaram com o dispositivo por 52 semanas, sem grandes problemas na maioria das vezes.

Pergunto à doutora Cindy Zadikoff se a inovação está na dupla de moléculas ou nesse modo de entrega subcutâneo. "Diria que em ambos", ela responde. "Sem dúvida, a tecnologia -- comparável à de uma bomba de insulina para diabetes -- é uma grande novidade no Parkinson. Mas os cientistas também se esforçaram para encontrar moléculas funcionassem bem desse jeito"

Ela frisa que a levodopa é um composto dificílimo de trabalhar, por desaparecer quase que por encanto. "O que desenvolvemos foi uma pró-droga, isto é, uma dupla de substâncias que são ativadas apenas dentro do organismo, o que ajuda bastante."

O estudo mais recente

A aprovação pela FDA se baseou em um estudo de fase 3, isto é, com pacientes, só que não mais para atestar que o tratamento era seguro e, sim, para provar que era eficaz.

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Foram 130 indivíduos de 80 centros de referência dos Estados Unidos e da Austrália. Eles foram divididos, sem ninguém saber — nem eles, nem os médicos — quem seria tratado de um jeito ou de outro, o que na ciência é chamado de estudo duplo-cego.

Metade recebeu a infusão contínua e comprimidos falsos de levodopa. Com a outra metade, foi feito o contrário: os comprimidos eram legítimos, mas a infusão era de mentirinha, injetando uma substância inócua. Isso durou três meses.

"Todos os participantes anotavam o que acontecia em um diário", conta a doutora Cindy. Assim, os pesquisadores ficavam sabendo quando eles tinham um período "on" sem tremer nem experienciar um congelamento; quando tinham um período "on" com tremores leves, que não chegavam a atrapalhar a rotina e, claro, se havia momentos 'off', em que o corpo ficava desgovernado.

Lembre-se: todos estavam naquele estado avançado em que a medicação oral não dava mais conta. Entre aqueles que usaram a infusão contínua verdadeira, o aumento da duração do período 'on' sem qualquer movimento involuntário nem paralisias foi, em média, de quase três horas durante a vigília, isto é, quando os indivíduos estavam acordados. Todos relataram uma enorme melhora na qualidade de vida.

E o futuro?

Por enquanto, a nova terapia ainda não foi estudada para pacientes em fases mais iniciais da doença, quando as drogas orais ainda funcionariam bem.

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Parece mais lógico imitar o corpo humano, entregando algo que se converte em dopamina no cérebro o tempo inteiro e em doses diferentes conforme a exigência de cada momento. "Certamente, existem pesquisadores pensando nisso", comenta a doutora Cindy. "Mas, antes, devemos observar os milhares de usuários para ver como dá para melhorar ainda mais esse sistema, inclusive usando recursos de inteligência artificial."

Que a novidade já se mostra excelente para muitos pacientes avançados, isso é inegável. A melhora dos sintomas motores pode ser percebida desde o primeiríssimo dia de tratamento.

Os usuários da nova terapia também reduziram bastante a medicação oral, que antes era tomada a cada 30 minutos, em média. Sim, ninguém foi liberado para deixar de vez os comprimidos. "Mas eles passaram a ser usados poucas vezes ao dia", garante a doutora Cindy.

Isso também faz uma diferença danada, já que os remédios orais para essa doença não podem ser ingeridos junto com proteínas na alimentação. Resultado: um aporte proteico deixando a desejar é outro ponto capaz estraçalhar a saúde das pessoas com Parkinson avançado. Resta aos brasileiros nessa condição aguardar a aprovação do tratamento no país.

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