Lúcia Helena

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Reportagem

Atenção aos sinais: cresce o número de abusos sexuais em menores de 4 anos

Os números são açoites capazes de rasgar o tecido sensível de que somos (ou de que deveríamos ser) feitos. Segundo um levantamento do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), em parceria com o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), houve um aumento de 23,5% nos registros de estupro de crianças menores de 4 anos entre 2022 e 2023 no nosso país. A cada 8 minutos, um pequeno ou uma pequena sofre abuso sexual.

Por isso, outro levantamento divulgado este mês pelo Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, pode ser revoltante, mas não exatamente surpreendente. No ano passado, chegaram ali 720 crianças que sofreram violência de todo tipo — machucadas por surras, negligenciadas e desnutridas, que praticaram autoagressão em resposta ao estresse.

"Mas, dessas 720, 420 eram casos de violência sexual mesmo", lamenta informar a pediatra Maria Cristina Marcelo da Silveira, que coordena o Programa de Violência à Criança e ao Adolescente do hospital, criado quando, em 2002, o estado do Paraná resolveu implementar uma rede de proteção às jovens vítimas.

O Pequeno Príncipe faz parte dela e se tornou referência nesse tipo de atendimento para crianças até 11 anos. O limite de idade é porque parte-se do princípio de que, a partir daí, a menina corre o risco de engravidar, precisando ser cuidada em centros que contem com serviços de ginecologia.

Maria Cristina da Silveira continua: "Por sua vez, dessas 420 crianças violentadas sexualmente que atendemos só no ano passado, 66% tinham menos de 6 anos". Na verdade, entre elas, a maioria — 60% do total — nem sequer tinha completado 4 anos. Em um gráfico que mostra a distribuição por idade, o pico é aos 3, com 96 casos. Não que sofrer abuso seja uma experiência mais leve em outras fases da vida, nem que outras formas de violência não sejam igualmente cruéis, bem entendido.

Aqui vão mais alguns números difíceis de suportar. Em 2024, a violência sexual foi a causa de 135 internações no hospital curitibano, um aumento de 31% em relação a 2023. A vítima mais nova tinha apenas 29 dias de vida.

Muitas crianças sofreram lesões físicas importantes, não só as que ficaram hospitalizadas: um total de 205, representando um aumento de 60% em comparação com o ano anterior. Por lesão, entenda: "Encontramos de tudo. Existem de meninas com ruptura do hímen àquelas com lacerações, inclusive anais, e fraturas, como a do quadril", revela a pediatra.

Angelita Wisnieski, coordenadora do serviço de Psicologia do Pequeno Príncipe, lembra que, nos anos 1990, quem primeiro levantou a possibilidade pavorosa de vítimas tão precoces de violência sexual foram os colegas da ortopedia: "Eles internavam bebês com fraturas de pernas, de braços, de crânio e nada disso é normal por causa de uma troca de fraldas ou por uma queda do berço", diz. "Logo, passaram a pensar nessa hipótese."

A violência que finge ser amor

No levantamento feito em Curitiba, as garotinhas foram vítimas em 81% das vezes. Já 88% dos agressores eram homens. E oito em cada dez episódios de violência sexual ocorreram dentro da própria casa — o que, segundo a doutora Maria Cristina, bate com os dados da literatura científica em todos os cantos do planeta.

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"Se não é alguém que mora com a criança, é uma pessoa que vive ao redor de sua família, como um tio, um avô, um padrinho, um dos melhores amigos do pai ou da mãe", afirma a pediatra. "Ou seja, uma pessoa de quem a criança espera proteção"

Eis a a armadilha. O agressor costuma encantá-la transmitindo a ideia de que aquilo é uma tremenda demonstração de carinho. "Até porque precisa de sua cumplicidade para não contar a ninguém o que está acontecendo", nota a médica.

Os registros apontam que tudo tende a começar com um passar de mãos, ganhando a confiança para que o pequeno ou a pequena se deixe acariciar. Daí ao adulto pedir "carinho" e culminar no ato sexual em si, o estupro, são poucos passos.

Este "amor", claro, machuca. "Mas a criança muito pequena aceita, pensando que toda mãe, todo pai, todo tio faz aquilo. E a gente até ouve histórias em que o adulto explicou ser normal se machucar. Afinal, quando ela, a criança, está brincando, às vezes cai, não é mesmo?" Se as queixas de dor aumentam, talvez entrem em cena presentes, como um doce ou um brinquedo em troca da boa disciplina e de aguentar sem fazer barulho.

Chega uma idade em que a criança percebe algo de errado. E o "amor" mostra sua face sem aspas, aquela que é a verdadeira, a do horror.

"Aí começam as ameaças físicas, na linha do 'se você não deixar, vai apanhar'. Ou, pior, o agressor diz que irá bater na mãe ou fazer a mesma coisa com os irmãos — este, aliás, costuma ser o maior dos medos. Ou, ainda, sugere que contará para todo mundo, ao perceber que, crescendo e entendendo as coisas, a criança ou o pré-adolescente sente vergonha", descreve a doutora Maria Cristina.

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Um pensamento que muitos têm é que, uma vez identificado o agressor, ele é afastado da criança até pela força da lei e tudo termina como em um filme de suspense. Mas a vida real tem um roteiro que nem sempre cabe em telas. "Muitas vezes, para a criança que confundiu tudo com amor, estamos tirando de sua convivência a pessoa com quem ela tinha o maior vínculo afetivo", reflete a psicóloga Angelita.

O acompanhamento psicológico, indispensável por essas e por outras, pode levar anos, com o objetivo de que a vítima consiga ressignificar a experiência e volte a confiar em outras pessoas — amigos, professores, parentes. Porque, se fosse para resumir, essa é a maior sequela do "amor" que violenta: a quebra da confiança, que poderá massacrar todas as possibilidades de relacionamentos futuros, inclusive os familiares e os de amizade.

Após a denúncia

O fluxo após uma denúncia no Pequeno Príncipe é exemplar. As crianças, primeiro, são divididas entre as caracterizadas e não caracterizadas. No segundo grupo, estão aquelas em que a perícia não acha sinais da violação. "Afinal, beijar, passar mão, pedir carícias íntimas não deixa marcas físicas", justifica a doutora Angelita. "O importante é não negar o ocorrido, falando que, então, nada aconteceu. Portanto, essas crianças são vítimas de violência sexual não caracterizada até que se prove o contrário."

As evidências podem demorar a surgir. A psicóloga se recorda de uma garotinha que soltava a raiva por ser abusada quebrando todas as bonecas durante as sessões. "Certa vez, depois de insistir em destruir tudo, ela me convidou para se esconder embaixo de uma mesa", conta. "Obedeci e perguntei por que tínhamos de ficar escondidas. A menininha, daí, fez o gesto de pedir silêncio. Era para o adulto que iria buscá-la não a ver, cochichou." O pano começou a cair.

"Às vezes, chegamos a apelar para o que, entre nós, chamamos de internação social", explica Angelita. "É quando há forte suspeita de que a criança pequena já foi, de fato, violentada e queremos um tempo maior para ouvi-la e observá-la."

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Já nos casos de estupro confirmado, mesmo na mais tenra idade, os pequenos são internados imediatamente por 72 horas para receber medicação contra infecções sexualmente transmissíveis, como a do HIV, o vírus da Aids.

Obviamente, para que haja chance de a rede de proteção formada por profissionais de saúde agir — e existem serviços de referência em todos os estados do país —, é preciso o básico 1, isto é, a denúncia sem perda de tempo, que pode ser até anônima.

O Pequeno Príncipe, diga-se, recebe pequenas vítimas atendidas tanto pelo SUS (Sistema Único de Saúde) quanto pela rede privada. A maior parte das denúncias, porém, vem dos usuários do SUS. A vulnerabilidade socioeconômica pode criar um ambiente mais propício à violência, é fato. "Porém, pessoas mais favorecidas não podem achar que essa ameaça não tem a ver com elas. E, no entanto, pode acontecer em qualquer lar. É preciso reconhecer os seus sinais e ter coragem, pela criança, para admitir que ninguém é inalcançável", opina a doutora Maria Cristina.

7 sinais que devem chamar a atenção

  1. Manchas no corpo e machucados, na área genital ou não, marcas de beijo e de mordidas. "Especialmente quando a criança não sabe explicar o que aconteceu ao ser indagada", dá a dica a doutora Maria Cristina.
  2. Conhecimento sexual inadequado para a idade. "Como aquele menino de 4 ou 5 anos que quer esfregar o seu pênis no amiguinho", exemplifica a médica. "Ou a menina que pede para colocar o dedo no genital da amiga." Aliás, geralmente os pedidos são para os colegas bem próximos porque -- lembre-se --, na cabecinha da criança violada, isso é uma demonstração de afeto.
  3. Verbalizações, em geral acompanhadas de risadas, como a de que viu o "pirulito do titio". Segundo a pediatra, claro que pode existir uma fantasia. Mas o tom de quem acha graça também pode ser porque o tal titio falou que aquilo era uma brincadeira. "Dificilmente uma criança menor de 6 anos relata o abuso sexual com pesar", garante ela.
  4. Sinais de medo ou até de pânico quando determinado adulto se aproxima. "E deve disparar ainda mais o alerta se é uma pessoa por quem a criança demonstrava carinho antes", diz Angelita Wisnieski.
  5. Sonolência excessiva, em um conjunto de sinais, não pode ser desprezada. "Como a maioria dos agressores é da família, essas crianças dormem mal ou porque estão sendo abusadas na madrugada ou porque sentem dor depois", relata a doutora Maria Cristina.
  6. Perda de xixi ou de cocô, se a criança já tinha controle dos esfíncteres. Ou seja, se ela já tinha parado de fazer suas necessidades nas calças e voltou a ter esse comportamento. Isso pode ser resultado tanto de uma lesão física provocada pelo ato sexual como pela fantasia de que, ficando suja, irá evitar novas aproximações. Na mesma linha, algumas crianças abusadas passam a vomitar com frequência, imaginando que o odor fétido lhes protegerá.
  7. Comer demais para perder as formas do corpo. Este é outro sinal apontado pela dupla de especialistas. Elas sabem que a causa pode ser algo completamente diferente. "O importante é não tirar a suspeita de agressão sexual da mente, diante deste ou de qualquer sinal", pensa a pediatra Maria Cristina.

O próximo dia 18, saiba, é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. E, com essa realidade, traduzida em números crescentes, o clima não será o de um domingo no parque.

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