Lúcia Helena

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Reportagem

Coração também tem apêndice e ele pode causar um AVC

No último dia 19 de fevereiro, uma mulher de 75 anos foi submetida a um procedimento híbrido no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. O cardiologista José Marcos Moreira, que trabalha há 27 anos por lá e é responsável pelo Serviço de Eletrofisiologia, matou dois coelhos em uma só tacada: ele fez uma ablação, isto é, usou ondas de radiofrequência para queimar o que estava fazendo uma parte do coração tremelicar em vez de bater e, de quebra, usou um dispositivo com ares de guarda-chuva para fechar o apêndice atrial.

Sim, senhores, nosso coração tem apêndice! "E, se o do intestino só serve para atrapalhar a vida e dar apendicite, o apêndice atrial esquerdo, no coração, só serve para formar trombo e causar um AVC, o acidente vascular cerebral", diz ele.

Uma ameaça, diga-se, que continuava por um tempo após a pessoa passar pela ablação e que, para quem não podia tomar anticoagulante por um motivo ou por outro, era motivo de pânico. Era o caso dessa paciente. Ela tinha uma alteração em um dos vasos que irrigam o intestino que já lhe fazia perder sangue e ficar anêmica. Ora, o remédio para evitar o AVC poderia provocar, ali, sangramentos terríveis e até fatais.

"Um número pequeno, até 5% dos pacientes, não pode usar anticoagulantes", informa o doutor Moreira. "É para eles que o procedimento híbrido está sendo indicado." Nos hospitais privados, ele já vem sendo feito há quase um ano. Esta, porém, foi a primeira vez em que algo assim foi realizado em um hospital público do país.

Eu queria entender o passo a passo desse avanço. O que o médico faz primeiro? E logo depois? Mas acabei aprendendo outras coisas interessantíssimas pelo caminho. Fiquei sabendo que a causa da fibrilação atrial, que faz o músculo cardíaco tremer em vez de se contrair, pode estar fora do coração. E que o eletrocardiograma pode dizer que esse músculo está se contraindo quando ele, na verdade, está praticamente parado. Para não dizer como os médicos, atordoado (sim, um miocárdio atordoado!).

E, finalmente, existe esse apêndice encrenqueiro, que pode ter os mais diversos formatos. Uns têm jeito de minhoca, assemelhando-se ao do intestino. Outros lembram uma couve-flor. A maioria se parece com uma asa de galinha. Mas todos, quando existe essa arritmia, são capazes de se transformar em uma caverna com um lago de sangue parado dentro. Esse sangue coagula e — pronto! — um pedacinho é capaz fugir e ser mandado para a cabeça.

A fibrilação atrial

Nosso coração se divide em quatro câmaras, lembra-se disso? As de cima são os átrios — e é no átrio do lado esquerdo que o bicho pega. Em vez de se contraírem e, depois, relaxarem, impulsionando o sangue oxigenado para a câmara logo abaixo que vai lançá-lo para todo o corpo, suas fibras musculares parecem desgovernadas. Umas se dobram, outras se esticam depressa, totalmente dessincronizadas. Resultado: no pedaço correspondente a essa câmara, é como se o coração tremesse. Ele fibrila — é o termo médico.

"É uma arritmia caótica", descreve o doutor Moreira. "E que tem duas consequências sérias. Como o átrio esquerdo deixa de impulsionar o sangue direito, a pessoa perde uns 30% de débito cardíaco." Em outras palavras, uns 30% do volume de sangue ejetado para o corpo, que passa a sofrer com a circulação capenga.

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"Outra consequência é que o sangue pode ficar parado dentro desse átrio, formando um trombo", informa o cardiologista. Ou seja, por si só, a fibrilação leva ao risco de coágulos, capazes de escapar para o cérebro.

Mas tudo se agrava — e é fácil entender — por causa do apêndice pendurado na parede interna dessa câmara cardíaca. Normalmente, o sangue vive entrando e saindo dele. Mas, se a movimentação sanguínea dentro do átrio está prejudicada, é bem provável que ele entre e não volte. Ou melhor, que saia dali já na forma de coágulo, depois de um tempo estagnado naquela "asa de galinha", naquela "couve-flor", no apêndice do formato que for.

As saídas até então

Os médicos fazem cálculos, que levam em conta se a pessoa tem comorbidades, como diabetes, para terem uma ideia do risco de AVC causado por essa fibrilação. Receitam, então, medicamentos contra a arritmia e também os famosos anticoagulantes, isto é, se o paciente pode tomá-los. "Se não pode, era aquela situação na linha do 'se ficar o bicho pega, se correr o bicho come'", lembra o doutor Moreira.

Já quando os medicamentos contra a arritmia não funcionam ou quando o paciente prefere passar por um procedimento em vez de tomar remédios para sempre, os cardiologistas realizam a ablação.

Os sinais errados das veias pulmonares

Foi justamente pela ablação que o doutor Moreira começou o procedimento híbrido realizado no mês passado. Com a paciente sob o efeito da anestesia geral, ele introduziu um cateter pela veia femoral, na perna, que viajou conduzindo uma agulha até o coração.

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Ela era comprida o suficiente para atravessá-lo pelo lado direito até alcançar o bendito átrio esquerdo. Uma vez ali, liberou o dispositivo em sua extremidade capaz de queimar o alvo. Alvo que não era nenhum ponto do músculo cardíaco. Não vinha dele, afinal, os sinais elétricos destrambelhados.

"Hoje, a gente sabe que a maioria das fibrilações atriais vem das veias pulmonares", conta o médico. São quatro no total, duas de cada lado. Todas desembocam no tal átrio esquerdo. "Delas, podem vir impulsos elétricos que acabam atingindo o coração", revela.

Quando é assim, o cardiologista passa a agulha por cada um dos quatro buraquinhos dentro do átrio, cauterizando a boca da veia do lado de fora Essa borda queimada funciona como fita isolante. Logo, o impulso que vinha do vaso não consegue chegar no músculo cardíaco. Mas o paciente ainda precisa tomar anticoagulante por um tempo. Aí é que vem a história do coração atordoado.

Quando o coração engana

"Quando faço a ablação, o átrio esquerdo fica meio paralisado", explica o doutor. O eletrocardiograma nem sempre entrega essa situação. Seus gráficos exibem o desenho de sinais elétricos típicos de uma bela contração. "Só o ecocardiograma mostra que essa câmara está quase imóvel."

O que acontece: "Ao cauterizar, você queima bastante e causa um processo inflamatório importante. Ele deixa o átrio esquerdo um tanto rígido", explica o cardiologista. Os sinais elétricos, percebidos pelo eletrocardiograma, podem estar corretos. No entanto, o músculo enrijecido não reage. "Demora de alguns dias até dois meses para ele voltar a bater normal", avisa o cardiologista. Nesse período, quem pode segue tomando anticoagulantes e quem não pode usar esses remédios agora conta com o tal procedimento duplo.

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Para fechar o apêndice

Segundo José Marcos Moreira, até 99% dos coágulos que se formam após a ablação vêm do apêndice, enquanto o átrio segue meio imobilizado, deixando sangue parado.

Daí que, pelo mesmo caminho no qual passou um primeiro catéter, ele conduz um segundo, carregando um guarda-chuva com diâmetro sob medida, produzido pela empresa Boston Scientific. "Ele vem fechado. Então, dentro do átrio esquerdo, eu o introduzo no apêndice para se abrir", descreve o especialista. O dispositivo pode ficar no peito pelo resto da vida, evitando que entre sangue no apêndice para formar coágulos capazes de emperrar no cérebro.

O "guarda-chuva" com função de tampão ainda não é oferecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Mas o Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo conseguiu comprá-lo e a ideia, daqui em diante, será fazer procedimento híbrido em todos os pacientes que derem entrada com um coração fibrilando, capaz de ficar atordoado, com um apêndice pronto para causar problemas à cabeça.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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