Por que a circunferência do pescoço pode indicar risco para o seu coração

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Já aconteceu comigo: a gente vê o resultado do exame de sangue e acha que ganhou estrelinhas no boletim da saúde porque a dosagem da glicose está normal, ufa! Nada de pré-diabetes, muito menos de diabetes. Só que isso não necessariamente significa que suas células já não estejam ficando resistentes à entrada desse açúcar. Ou seja, não garante, por si só, que a insulina, hormônio que faria o papel de chave, esteja funcionando como antes.
Muita gente não se dá conta quando já apresenta resistência à insulina, mecanismo que joga lá no alto o risco de problemas no coração adiante e, claro, de diabetes também. Hoje há estudos afirmando que até mesmo quadros de demência começam quando os neurônios se tornam resistentes a esse hormônio.
O único jeito de alguém ter certeza absoluta se tem resistência à insulina ou não seria fazer um clamp euglicêmico-hiperinsulinêmico, mas tire isso da cabeça. Submeter-se a ele seria mais complicado do que entender esse nome que, aproveitando, já explico: clamp, em inglês, quer dizer "pinça"; euglicêmico, do grego, seria a glicemia perfeita, sem glicose a mais, nem a menos no sangue; por fim, hiperinsulinêmico significa muita insulina.
Esse exame dura umas quatro horas, precisa de uma equipe ultra-especializada e custa uns 2 mil reais. E — agora vem o balde de água fria! —, por essas e outras só é usado em pesquisa. No Brasil inteiro, por sinal, só é feito em duas instituições. Uma delas é o OCRC (Obesity and Comorbidities Research Center), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que tem como investigador principal o endocrinologista Bruno Geloneze.
"Daí que a ciência sempre buscou maneiras mais simples de detectar essa condição", diz ele que, ainda em 2013, ao lado de seu grupo, revelou que a circunferência do pescoço seria um bom indicador de resistência insulínica, comparando essa medida com o tal do clamp. Este, por ser o exame padrão-ouro, é sempre usado como a régua de referência.
A confirmação da IA
Agora, um trabalho de doutorado recém-divulgado pelo Imecc (Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica), da mesma Unicamp, usou inteligência artificial para testar diversos caminhos para se diagnosticar precocemente a resistência à insulina, examinando dados de 2.607 pacientes do Ceará, de Minas Gerais e de São Paulo. O autor da tese, Leandro Silva Teixeira, coorientado pelo professor Geloneze, empregou algoritmos de dar nó na inteligência humana para cruzar tudo o quanto é dado — diversas medidas corporais, dosagem de insulina e de glicose, índice de massa corporal, peso, idade...
A conclusão é que a resistência à insulina é comum em homens com circunferência de pescoço acima de 42 cm. No caso do sexo feminino, a maioria das mulheres com essa medida maior que 39 cm já tinha resistência ao hormônio. Nelas, a circunferência abaixo de 36 cm indicaria um resultado negativo e, entre 36 cm e 39 cm, uma faixa cinzenta, isto é, um "pode ser que sim, pode ser que não", valendo tomar cuidado.
Por que o pescoço?
"A fita métrica é algo que todo mundo tem em casa", observa o professor Bruno Geloneze, comparando seu uso com tentativas anteriores de flagrar a resistência insulínica bem cedo. Por exemplo, alguns cientistas chegaram a propor o chamado índice TG, que seria uma relação matemática entre os níveis da glicose no sangue e os dos triglicérides.
"Por um lado, é um caminho simples e barato, porque você pode dosar essas duas substâncias em qualquer lugar e não depende do exame da insulina, que é mais caro", explica o professor. Só um detalhe complicou a vida dos médicos no dia a dia: a equação para obter o índice TG é dificílima. Então, ele acaba sendo deixado de lado.
Voltando à fita métrica que todo mundo sabe usar... Medir a circunferência abdominal é uma alternativa. Ela dá uma boa ideia, independentemente do peso, de se a pessoa está acumulando muita gordura central entre as vísceras ou não. Ao contrário da gordura subcutânea — que pode alterar as formas com dobrinhas, mas não faz mal à saúde de ninguém —, a gordura central libera uma série de citocinas, substâncias inflamatórias que, caindo na circulação, não deixam a insulina funcionar direito. É o estopim do problema.
Então, sim, uma circunferência abdominal mais larga pode acusar um acúmulo da gordura que causa a resistência ao hormônio. Mas há quem questione: quantas e quantas pessoas não fizeram plástica na barriga e exibem uma medida menor que pode, digamos, enganar um pouco? E quantas não têm hérnia umbilical, aumentando a circunferência por causa dela, ou um abdômen caído depois de perder muito peso, dificultando colocar a fita no lugar certo?
"Sem contar que dá para medir o pescoço em uma campanha nas ruas, sem causar constrangimento", pensou, ainda, o professor Geloneze. O resultado só seria enganoso para quem tem bócio, com uma tireoide extremamente aumentada.
A gordura que está ali
Foi um pesquisador israelense quem primeiro apontou a medida do pescoço como alternativa à do abdômen. Mas foi o grupo de Geloneze, na Unicamp, o primeiro do mundo que validou esse método, comparando os centímetros de pescoço com os resultados do clamp de pacientes.
"Temos a coluna vertebral passando por essa região, assim como a traqueia, o início do esôfago, músculos e gordura", descreve o professor. "E, tirando o caso de marombeiros, que ficam com o pescoço largo de tanta musculatura, a única coisa que pode aumentar demais essa medida é mesmo a gordura." E que gordura!
Por falta de espaço, ela se acomoda sob a pele — mas de "benigna", como uma legítima gordura subcutânea, não tem nada. "Aquele pneuzinho na nuca é maléfico", afirma o professor. Na verdade, a gordura no pescoço dá uma noção da gordura central que já ocupa todo o tronco — inclusive a nobre região superior. Há quem diga que o tecido adiposo ali, no tronco, é o mais danoso de todos. Para a insulina, então, sem comentários. Ela fica sem condições de agir como deveria.
O exame complicado
Sabe-se que a insulina fica em situação difícil porque, vale repetir, a medida do pescoço foi validada fazendo a comparação com os resultados do exame do clamp, em que a pessoa é picada nos dois braços. Em um deles, os pesquisadores injetam insulina, em uma dose 10 vezes maior que a normal, em velocidade constante.
Insulina nessa quantidade sem glicose suficiente na circulação seria morte na certa. Mas não há risco de isso acontecer porque, no outro braço, é injetada essa espécie de açúcar. Agora pense: se há muito hormônio insulina e está tudo bem, porque as células continuam sensíveis a ele, é preciso oferecer uma dose igualmente descomunal de glicose na veia para seus níveis permanecerem normalíssimos no sangue.
No entanto, se a insulina já não funciona às mil maravilhas, parte da glicose injetada não entrará depressa nas células e sobrará no sangue. Então, para manter seus níveis normais na circulação, os pesquisadores terão de injetá-la em doses menores. Se isso acontece, o diagnóstico é de resistência.
Talvez se pergunte porque o exame demora cerca de três horas. É o professor Geloneze quem tira a dúvida: "Porque, passada a primeira hora, o pâncreas deixa de produzir momentaneamente insulina e o único hormônio disponível é aquele que estamos aplicando". Algo parecido ocorre um tempo depois com a glicose, que deixa de ser liberada naturalmente pelo fígado. Ou seja, os cientistas podem observar o que está acontecendo nas células, se estão resistentes à entrada do açúcar ou não, sem qualquer interferência desses órgãos.
E o tal do HOMA?
Talvez já tenha visto isso nos seus exames. Quer dizer "homeostatic model assessment", algo como avaliação do modelo homeostático. Mas fique com a sigla mesmo.
É um cálculo, também muito usado, criado por um professor britânico da Universidade de Oxford: glicemia vezes insulina dividido por 405. No nosso país, os cientistas do grupo do professor Geloneze estabeleceram que um número a partir de 2,7 indica que você já tem resistência à insulina, depois de validar a conta fazendo... Claro, o clamp ! E comparando com os resultados em pacientes brasileiros.
Tenho resistência à insulina, e agora?
"Se, por um lado, é importante saber disso, por outro estou farto de ver condutas erradas", suspira o professor Geloneze. Ele se refere à prescrição de medicamentos como a metformina. Isso não causará maiores males, mas de nada adianta. "É o tipo de remédio para quem já apresenta glicose elevada, diabetes ou pré-diabetes, e não para quem só tem resistência à insulina", diz o endocrinologista.
O diagnóstico dessa condição é um alerta sobre a necessidade de mudança no estilo de vida. Atividade física e dieta para perder gordura até no pescoço? "Isso seria muito reducionista", retruca o cientista. "É preciso também dormir direito, diminuir o estresse, evitar ao máximo os ultraprocessados e fugir de tomar remédios à toa, como aquele corticoide usado a torto e a direito quando alguém tem um resfriado comum", avisa.
Em tempo: corticoides também aumentam a resistência à insulina que, como se vê, resulta de todo um pacote de maus hábitos. Já mediram o seu pescoço para ver se não passou da hora de mudá-los?
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