Enigma: por que reduzir os triglicérides não parece proteger o coração?
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Quando a gente pensa em alterações nas gorduras na circulação, que são as tais dislipidemais, o colesterol aumentado logo vem à cabeça. No entanto, de todas, a mais comum tem a ver com os triglicérides lá nas alturas, isto é, acima de 150 mg/dl (miligramas por decilitro de sangue) em jejum. É o que acontece com 30% da população mundial.
E por que isso se tornou assim tão frequente? Primeiro, por causa da explosão da obesidade. Ora, a hipertrigliceridemia — palavrão do "medicinês" para rotular essa condição — é causada por fatores genéticos, pelo ganho de peso e pelo consumo excessivo de álcool e carboidratos simples, como doces, pães e massas.
Os cardiologistas percebem — e não é de hoje — que, quando os triglicérides sobem, cresce também o risco de doenças cardiovasculares. Digo mais: se você olha para os genes, aqueles por trás do aumento dos tais triglicérides também estão envolvidos com a ameaça de você você infartar, o que pode não ser mera coincidência.
Quando você pega pessoas que já têm doença coronária e que estão tomando estatinas para baixar o colesterol, se os seus níveis de triglicérides continuam altos, a probabilidade de terem um novo infarto é 40% maior do que se essa gordura estivesse em níveis adequados, mesmo com o LDL — vulgo colesterol ruim — completamente controlado.
"No entanto, mostrar que níveis de triglicérides altos aumentam o risco cardiovascular é uma coisa. Provar que diminuir essa gordura no sangue afasta a ameaça de alguém morrer do coração ou até mesmo de ter um AVC são outros quinhentos", afirma o cardiologista Raul Dias dos Santos."Contra toda a lógica, nenhum tratamento para reduzir os triglicérides fez cair esse risco. Fica no ar o enigma: por quê?"
A frustração dos cardiologistas
Pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein e professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), onde também dirige a Unidade de Lípides do InCor (Instituto do Coração), Raul Santos conta que já se tentou de tudo, de prescrever fibratos — medicamentos específicos para baixar os triglicérides — a indicar um remédio à base de óleo de peixe modificado, indisponível no Brasil, que parece ter um efeito benéfico nesse contexto.
"Só que, acompanhando pacientes tratados para baixar os triglicérides e afastando todos os outros fatores de risco que poderiam nos confundir, como o tabagismo, o fato é que eles continuam tendo problemas cardiovasculares do mesmo jeito", conta o médico.
Inconformado, Raul Santos se juntou a colegas da Dinamarca, dos Estados Unidos e da Holanda, apontados entre os maiores especialistas em dislipidemias do mundo, procurando decifrar esse enigma. O resultado é um artigo recém-publicado no respeitado European Heart Journal. O texto propõe duas mudanças na maneira como são feitos os estudos sobre o tema para a Cardiologia sair desse impasse.
Os tais triglicérides
Nosso tecido adiposo é recheado de...? Triglicérides! A gordura dos alimentos, não importa se de origem vegetal ou animal, também está nessa forma. Isso porque os triglicérides são a maneira que a natureza encontrou para armazenar energia nos seres vivos.
E, como gordura não se dissolve em líquido, para correr pelo nosso sangue os triglicérides são transportados por proteínas. É a VLDL (sigla em inglês para lipoproteína de densidade muito baixa) que costuma dar carona para uma grande quantidade dessas moléculas. Elas são quebradas pelo caminho em pedacinhos de ácidos graxos livres que serão usados pelas células. Aliás, coração tem predileção por essa fonte de energia. Mas, ninguém sabe exatamente por quais mecanismos, quando ela sobra aos montes na circulação, ele parece sofrer.
Analisando estudos que envolveram mais de 150 mil pessoas, o professor Raul Santos e seus colegas notaram que o surgimento de problemas cardiovasculares é muito mais evidente quando os triglicérides estão altos pra valer. Vem daí a primeira sugestão do artigo recente.
O perfil dos participantes
"Normalmente, os estudos para observar qual seria o efeito da diminuição dos triglicérides selecionam participantes com 150 a 500 mg/dl dessa gordura no sangue", explica o cardiologista. "Sem dúvida são pessoas que já correm maior risco de problemas sérios. Mas esse risco subiria ainda mais se os níveis fossem igualmente mais altos."
A questão é que os cientistas sempre evitaram participantes com níveis acima de 500 mg/dl porque, se os triglicérides ficam elevados a esse ponto, há o perigo de estourar uma pancreatite. Ou seja, o receio era de que não seria lá muito ético deixar parte dos voluntários sem medicamento, sabendo que o pâncreas poderia inflamar.
"Hoje, porém, a gente sabe que isso acontece com um número ínfimo de indivíduos que, geralmente, já tiveram pancreatite antes ou que consomem muito álcool", diz o professor Raul Santos. "Nossa sugestão é deixar gente com esse perfil de fora dos trabalhos futuros para incluir participantes com até 900 mg/dl de triglicérides. Será mais fácil notar se a diminuição teria um impacto positivo para o coração em pessoas com níveis assim, mais elevados", aposta.
Baixar ainda mais
Este, talvez, seja o ponto principal: os pesquisadores concluíram que, para começar a ter qualquer efeito nítido de proteção cardiovascular, os níveis de triglicérides precisariam despencar entre 130 e 150 mg/dl. Menos do que isso, o impacto seria um tanto sutil.
"A questão é que os medicamentos atuais só levam à redução de uns 25% dos triglicérides em circulação", explica o cardiologista. Então, calcule: alguém com níveis de 250 mg/dl da gordura, que é a média dos voluntários nos estudos feitos até então, só conseguiria cortar cerca de 60 mg/dl, menos da metade do necessário para a gente enxergar qualquer benefício para o coração.
Novos tratamentos
Segundo Raul Santos, há pelo menos três medicamentos em fase adiantada de estudos que conseguem promover quedas de até 60% nas taxas de triglicérides. Em princípio, eles foram desenvolvidos para portadores de uma doença rara, a quilomicronemia familiar. "Quem é portador dessa síndrome chega a ter mais de 5 mil miligramas de triglicérides por decilitro de sangue!", diz ele.
Agora. a ideia é ver a ação desses tratamentos em quem não tem a tal doença rara. Um desses trabalhos, por exemplo, o CAPTAIN, vai testar o plozasiran, um anti-RNA aplicado como injeção a cada três meses. Ele bloqueia a ordem para o fígado produzir mais e mais triglicérides.
Além dos remédios
E não dá para fazer mais nada? — é o que pergunto. "Claro que dá", fala o médico. "Diferentemente do colesterol, os triglicérides respondem bastante às mudanças no estilo de vida, para o bem e para o mal. Por exemplo, eu aposto que, depois do Carnaval, todo mundo está com seus níveis mais elevados. Mas eles podem baixar se a pessoa só comer carboidratos complexos, como pães integrais, cortar o álcool, evitar ao máximo o consumo de açúcar, fazer atividade física e perder peso."
O cardiologista só lembra que, além da eventual dificuldade para seguir à risca a cartilha de bons hábitos, para quem tem triglicérides muito elevados, tudo isso pode não ser o suficiente para fazê-los cair aqueles 130, 150 mg/dl. E, sendo assim, os remédios podem ser necessários para fazer toda a diferença.
Mas, antes, a Cardiologia precisa resolver o enigma, provando que a diminuição dessa gordura protegeria o peito. A aposta da vez é que, com reduções maiores, sim.
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