Lúcia Helena

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Reportagem

Urucum combate inflamação e pode ajudar quem tem gordura no fígado

Um terço dos brasileiros está com gordura infiltrada nas células do fígado e essa proporção é mais que o dobro quando a gente olha apenas para quem tem diabetes. O problema dessa infiltração é que 2 em cada 10 pessoas com um fígado assim, todo engordurado, desenvolverão fibroses, cicatrizes que atrapalharão o funcionamento desse órgão vital.

O assustador é que uma parte menor — isto é, 5% dos indivíduos — chegará a ter cirrose ou até mesmo câncer de fígado. Não é só isso: muito antes dessa calamidade, a tal da esteatose hepática cria uma usina de substâncias inflamatórias que, derramadas no sangue, abalam até mesmo o coração.

Esse quadro, claro, sensibiliza o engenheiro de alimentos Mário Maróstica Junior, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista. Há mais de 17 anos, ele investiga como compostos encontrados em alimentos da nossa biodiversidade podem ajudar na prevenção e até mesmo no tratamento de doenças crônicas não transmissíveis. "Não há dúvida de que a alimentação é um dos fatores mais importantes para evitá-las", afirma.

As pesquisas do seu grupo vêm focando principalmente na obesidade, nas doenças inflamatórias do intestino, no declínio cognitivo e no câncer de próstata. Mas o fígado, ou melhor, a doença gordurosa no fígado, acabou disputando um pedaço de sua atenção quando o professor recebeu um determinado extrato das mãos de pesquisadores da Rubian, uma empresa filha da Unicamp.

Criada por ex-alunos e incubada na própria universidade, a Rubian tem como missão produzir extratos vegetais cheios de bioativos, mas por meio de tecnologias que sejam sustentáveis para o meio ambiente. Na ocasião, o que levaram para o professor Maróstica estudar era um extrato de cor ensolarada, afogueada, concentrando os componentes ativos da Bixa orellana, que o povo tupi guarani, desde sempre, chama de urucum. Em sua língua nativa, urucum quer dizer vermelho.

Tudo bem, deveria ser mesmo algo rico em bioativos — desde que o Brasil é Brasil, todo mundo conhece a boa fama do urucum. Mas ficava a pergunta da ciência: pensando na nossa saúde, para que, de fato, aquele extrato puríssimo serviria? "A partir da análise detalhada da composição, fomos examinar o que já se sabia a respeito dos efeitos de cada substância na literatura científica e realizamos uma série de testes", conta o professor Maróstica.

O projeto foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). E o que o engenheiro de alimentos da Unicamp e seu time constataram em cobaias é que o extrato de urucum poderia prevenir e, em até certo grau, reverter a infiltração de gordura no fígado. Então, foi gerada uma patente, alegando esse efeito.

Agora, o tal extrato — batizado de Colliv — passou a ser encontrado em farmácias de manipulação, mas exige prescrição, com o médico fazendo o cálculo da dosagem para cada paciente.

Por dentro do urucum

Na região amazônica, as populações sabem muito bem: triturando as sementinhas rubras do urucum, escorre um óleo que há séculos é usado como pintura pelos povos originários e em várias preparações culinárias. Aliás, das sementes também costuma ser feito um pó que as cozinheiras de todo o país conhecem como um corante natural, o colorau.

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O que dá a cor, na verdade, é uma substância chamada bixina. Além dela, há boas doses de geranilgeraniol, que parece ser um baita anti-inflamatório. Há, também, bocados de tocotrienol, uma forma potente da vitamina E, famosa por seus efeitos antioxidantes.

"Basicamente, são terpenoides", resume Maróstica, oferecendo uma pitada a mais do vocabulário dos bioquímicos. "Terpenoides são moléculas da mesma família das substâncias que dão cor ao mamão, por exemplo." Segundo ele, no urucum o que vale, mais do que uma substância ou outra, é a combinação e a sinergia entre todas elas.

Três ações no fígado

Depois de analisar os componentes, o professor ofereceu uma dieta lotada de gordura saturada a animais de laboratório. Com isso, o esperado era que ganhassem muito peso e que suas células passassem a ficar resistentes à ação do hormônio insulina, sem deixar a glicose presente na circulação entrar — o que, por sua vez, abriria as portas para o diabetes e pavimentaria o caminho para a esteatose hepática, isto é, para o acúmulo de gordura no fígado. Essa esteatose, por sua vez, dispararia inflamações.

Moral da história: a dieta gordurosa e calórica dos bichinhos era um caos anunciado. No entanto, entre os animais que receberam o extrato de urucum, não houve tanta resistência à insulina para favorecer a esteatose. Os cientistas também notaram que esse extrato inibia uma enzima fundamental para a deposição de gordura no fígado.

"Resolvemos esmiuçar um pouco mais e encontramos três mecanismos principais por trás disso tudo", relembra Maróstica. "Um deles é que o extrato de urucum interfere na expressão de genes envolvidos na resistência à insulina. Esses genes fazem as células aproveitarem melhor carboidratos e gorduras, evitando que fiquem sobrando", explica. "Outro mecanismo é anti-inflamatório e ele também é importante porque a inflamação, por si, dificulta o trabalho da insulina. Por fim, há uma ação antioxidante, capaz de reparar danos."

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Pergunto se esse efeito 3-em-1 não poderia proteger órgãos além do fígado, igualmente castigados pela obesidade e pela inflamação que essa doença provoca. "Não é improvável", responde o professor. "Mas, no momento, sabemos o que pode acontecer com o fígado de quem usa o extrato e o que descobrimos já é bom."

Menos tóxico para nós e para o ambiente

Apesar de o urucum estar presente à mesa e ser usado como corante em diversos produtos, de remédios a cosméticos, os pesquisadores da Unicamp acharam por bem submeter o extrato a testes toxicológicos. "Ele é seguro, não provocou qualquer alteração das enzimas hepáticas que indicariam uma intoxicação", garante o professor.

Vale ressaltar que, no caso, os bioativos do urucum foram extraídos por meio de gás carbônico supercrítico. E, aqui, cabe uma explicação: as sementinhas do fruto guardam a sete chaves esses componentes ativos dentro de camadas de gordura que tanto os protegem como os tornam indisponíveis. "Para liberá-los e produzir extratos, o jeito clássico era usar solventes", conta Maróstica. Dois problemas: esses solventes terminavam jogados no meio ambiente e também iam parar um pouco no produto final. Logo, dentro da gente.

Com a tecnologia do gás carbônico supercrítico, estudada na Unicamp e empregada pela Rubian, é diferente. Esse gás que existe no ar que respiramos é aquecido em torno de 30ºC e, com uma tremenda pressão, vai removendo as camadas lipídicas das sementes do urucum. É um processo limpo, ou seja, que não deixa resíduos tóxicos no ambiente. E o extrato sai puríssimo, com uma qualidade bem maior, de acordo com os cientistas — o que ajuda na proteção do fígado e da nossa saúde como um todo.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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