Por que o calor extremo não deixa a gente pensar direito

Ler resumo da notícia
Uma nova onda de calor, dizem os meteorologistas, deve fazer a temperatura de várias regiões do país bater recordes a partir desta sexta-feira (28). Se hoje já está difícil raciocinar por causa do tempo quente, imagine como ficará? Teremos a impressão de sair fumaça do cérebro na hora de tomar qualquer decisão.
Essa história não nasceu da minha cabeça encalorada: há uma série de estudos bem interessantes mostrando que, em temperaturas muito elevadas, com as quais o corpo humano não está habituado, a capacidade cognitiva sai afetada.
Um dos trabalhos que ainda chama a atenção sobre o tema nem é tão novo. Na verdade, saiu na PLOS Medicine há quase sete anos, contando o que aconteceu com um grupo de 44 estudantes da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, quando Boston enfrentou um verão mais quente que o normal.
Pois bem, 20 desses alunos, com idade média de 20 anos, contavam com o frescor de um ar-condicionado no dormitório. Só que os outros 24 não tinham o mesmo privilégio. Durante e até dois dias depois de passar uma onda de calor pela cidade americana, todos fizeram testes de cognição e de memória logo de manhã. Resultado: o desempenho da turma que vivia no quarto mais quente e abafado foi bem pior.
O limite de cada um
A temperatura "quente" que os jovens tiveram de encarar oscilava entre 26,7ºC e 28,5ºC, o que, para nós brasileiros, nesta altura seria refresco. Mas isso faz a gente entender que, para o cérebro, a percepção de um ambiente superaquecido — dentro de certos limites, claro — pode mudar de pessoa para pessoa, conforme a região onde cresceu ou está habituada a viver.
"É bem conhecida a relação entre calor extremo e um prejuízo na velocidade do processamento de informações no cérebro", diz o neurologista Diogo Haddad Santos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e médico do Hospital Nove de Julho e do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, ambos na capital paulista. "Mas não é simples generalizar e definir o que seria um ambiente superaquecido."
Ele observa isso nos indivíduos com esclerose múltipla que, quando a temperatura corporal sobe demais por qualquer motivo — eventualmente, por causa do clima escaldante —, podem ter o que os médicos conhecem por síndrome de Uhthoff que, entre outros sintomas, desencadeia uma fadiga indescritível.
"Tenho pacientes com esclerose múltipla em várias regiões do país", conta o medico. "Os da Paraíba ou de Cuiabá, por exemplo, vêm para a consulta de camisa de manga comprida quando está fazendo uns 26 graus lá fora. Já um paciente do Sul pode apresentar os sintomas dessa síndrome quando sai e encontra essa mesma temperatura. É mais ou menos assim com todo mundo, mesmo para aqueles sem essa doença: o cérebro pode se adaptar a um clima mais quente, se sempre viveu nele. Mas irá sofrer se não está tão acostumado."
E quando falamos em onda de calor, lembra o médico, ninguém está acostumado: ela causa uma subida aguda e acima da média no termômetro.
Por que o raciocínio fica lerdo
Existem boas hipóteses para explicar por que a gente tende a não pensar direito quando o calor está insuportável. "A desidratação, com certeza, é um fator importante", lembra Diogo Haddad. "E atenção: você não precisa estar suando em bicas. Só pelo fato de aumentar a produção normal de suor por um tempo prolongado, o corpo perde mais sódio e outros minerais. No cérebro, esse desequilíbrio mexe com o metabolismo energético."
É como se ele consumisse mais energia para fazer o mesmo de sempre. E olha: se existe um órgão que zela por sua sobrevivência é esse tal de cérebro. "Nesse ambiente superaquecido, ele logo entra no modo reserva", compara o neurologista. "Entende que precisa consumir menos para não ficar sem o seu abastecimento, o que lhe traria riscos consideráveis. Portanto, o que muitos estudiosos entendem é que atrapalhar a função cognitiva seria uma estratégia para não sair, não se expor, não trabalhar tanto..."
O cálculo, aqui, é da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos: a partir dos 22ºC de temperatura ambiente, cada grau a mais faz a capacidade de raciocinar de um indivíduo cair de 1% a 4%.
Claro, talvez com a gente, que vive num Brasil ensolarado, essa queda passe a ser sentida a partir de temperaturas um pouco mais altas. O que importa nesse tipo de estudo não é tanto determinar o que o termômetro deveria marcar para a cognição ir bem, obrigada. E, sim, mostrar que, de um ponto em diante — ponto que pode até variar ligeiramente conforme a pessoa e o lugar onde ela vive —, quanto mais quente, pior para o raciocínio.
De cabeça quente
O humor é outro que muda nas ondas de calor. E isso também é bem documentado pela ciência. Há diversas pesquisas apontando que, se estamos sofrendo com o tempo quente, ficamos bastante irritadiços — há mais brigas em bares e nas ruas, calculam algumas delas.
Um trabalho feito há dois anos, assinado por cientistas alemães da Universidade de Potsdam e publicado na Lancet, usou recursos de geolocalização para descobrir de onde vinham os tweets da atual rede X de Elon Musk. E, claro, cruzou a "temperatura" do conteúdo com a do local dos autores. No frio de rachar — no caso, entre -6ºC e 3ºC —, os discursos de ódio na mídia social aumentavam até 12%. Já nas ondas de calor, com a sensação térmica beirando ou até ultrapassando 40ºC, a quantidade de postagens raivosas e ofensivas crescia em torno de 22%.
"O que sabemos sobre como o calor interfere no humor vem de estudos com animais, porque é inviável superaquecer o corpo de voluntários para ver o que acontece na vida real", explica Diogo Haddad. "A certeza é que as temperaturas extremas — e, aí, vale o frio intenso também — interferem na região cerebral frontal."
Essa área do cérebro, na altura da testa, é aquela que nos faz pensar duas vezes antes de sair xingando alguém ou fazendo bobagem. Ou seja, é a que mede as consequências pelos nossos atos, sabe? O neurologista acredita que, nesse fenômeno, também existiria uma pitada de influência do processo de evolução: a piora do humor poderia reduzir a vontade de sair de casa ou de fazer qualquer coisa. Novamente, o cérebro seria poupado. "Além disso, muita gente não consegue dormir direito com esse tempo", lembra Diogo Haddad. Isso também contribuiria para a irritação que os estudos observam.
O médico só pede para a gente não confundir ondas de calor extremo com dias de sol. O cérebro adora um céu azul e claro. "Talvez porque representa o momento em que nossos antepassados tinham maior facilidade para sair, achar água, caçar, encontrar parcerias e se acasalar", pensa. Nos dias de verão, acredite, a tendência é estarmos mais animados e com o raciocínio mais ligado. Mas estamos falando de verão à moda antiga, se você ainda tem cabeça para me entender nesse clima.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.