Lúcia Helena

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Reportagem

Novo tratamento contra o mieloma múltiplo evita a progressão da doença

Ele não está a ponta da língua como outros cânceres: quase ninguém sabe dizer o que é um mieloma múltiplo. Em parte, segue ignorado por ser mesmo mais raro. Ora, se olhar para tudo o quanto é tipo de câncer, só 2% dos casos são dessa doença que parece surgir do nada, já que a ciência desconhece os fatores que aumentariam o seu risco para, ao menos, alguém suspeitar do cansaço sem fim e da sensação incessante de corpo moído.

Pouca gente desconfia logo no começo, quando seria mais fácil tratar, até porque a idade média dos pacientes, se a gente pensar nos Estados Unidos e na Europa, é de 69 anos, quando fadiga e dores são equivocadamente tidos como sinais naturais do tempo vivido.

Entre os latino-americanos e os afrodescendentes, porém, o mieloma múltiplo tende a aparecer um pouco mais cedo, lá pelos 60 ou 65 anos. E claro que há exceções: uma parcela pequena dos pacientes, menos de 5%, tem o tal mieloma com menos de 40 anos.

Mas, sempre, a confusão inicial é tamanha e o subdiagnóstico parece ser tão grande que nem se sabe direito quantos casos existem pelo mundo — há quem diga que, atualmente, são uns 200 mil, pouco mais de 2.000 deles no Brasil.

O fato de a maioria dos registros ser em gente mais velha já pode complicar a vida, ou melhor, o tratamento. Isso porque, nessa faixa etária, muitos já apresentam um probleminha no coração, diabetes e outros males que não deixam o organismo tão inteiro para enfrentar uma terapia contra o câncer. Ainda mais — o que seria o ideal, na situação — um transplante de medula.

A notícia fresca para essas pessoas que não aguentariam ser transplantadas ou que têm uma doença bem resistente é que acaba de aterrissar no Brasil, trazida pela farmacêutica de origem francesa Sanofi, uma nova medicação, que já está sendo usada em mais de 50 países. O nome é complicado: isatuximabe.

Trata-se de um anticorpo monoclonal, isto é, um anticorpo produzido em laboratório que vai direto ao ponto, ou melhor, vai direto à CD38, proteína abundante apenas na superfície das células com esse tipo de câncer. Por isso, deixa os exemplares sadios em paz, gerando bem menos efeitos colaterais. A novidade, que vem sendo prescrita ao lado de drogas que já eram empregadas contra o mieloma múltiplo, promete ser um divisor de águas.

Em um estudo publicado no ano passado, acompanhando pacientes com mieloma múltiplo por 60 meses, os cientistas notaram que, acrescentando o "isa", como a molécula vem sendo carinhosamente chamada entre eles, 63% dos pacientes permaneceram vivos e, melhor, cheios de ânimo. Porque a doença ficou sob absoluto controle, estancada, sem progredir. E isso graças a um medicamento que não cobra o preço de arrasar com a qualidade de vida. Novos trabalhos aumentam a aposta sugerindo que, com esse tratamento, o tempo livre de progressão do mieloma múltiplo possa superar os 90 meses.

Que doença é essa

O mieloma múltiplo é um câncer que surge na medula, que seria a fábrica do nosso sangue. Outras doenças, bem mais comuns e conhecidas, também têm origem ali: a leucemia e o linfoma. "O que faz o mieloma múltiplo ser diferente é o tipo de célula que se torna maligna. Estamos falando justamente das células do plasma. Ou, sendo mais específico, daquelas que produzem os anticorpos com os quais nosso organismo se defende de infecções", diz o hematologista Joseph Mikhael. E talvez ninguém melhor do que ele para explicar essa condição.

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Hoje professor do TGen (The Translational Genomics Research Institute), no Arizona, Estados Unidos, com trajetória por algumas das mais renomadas instituições de saúde americanas, ele é também chief medical officer, isto é, o líder na área de Medicina da International Myeloma Foundation e investigador principal do tal estudo que acompanhou pacientes tratados com o isatuximabe por um bom tempo.

"No mieloma, aquelas células do plasma passam a se multiplicar sem parar", continua o especialista. Aliás, na imagem desta coluna, você vê a divisão celular acontecendo dentro da medula. "Os anticorpos, então, jorram em quantidade inimaginável. E não são mais aqueles anticorpos que nos protegeriam contra uma gripe ou uma covid-19", diz ele. "Em vez de atacar agentes infecciosos, eles golpeiam o próprio corpo. As maiores vítimas de seus ataques são os ossos e os rins."

A medula, por sua vez, está tão ocupada com esses anticorpos doentios que não dá conta de produzir outras células sanguíneas, como os glóbulos vermelhos, que transportariam oxigênio. Sem esse gás, a fadiga impera.

Não à toa, lá fora os hematologistas usam um acrônimo para o mieloma múltiplo. Acrônimo é como se diz quando cada letra de uma palavra é a inicial de outra e o conjunto serve para descrever alguma coisa. "Chamamos a doença de CRAB", conta o professor Mikhael. Soa como "caranguejo" em inglês. Mas, aqui, o "c" vem de cálcio: ora, com os ossos em frangalhos pelos ataques dos anticorpos, o mineral se esfarela e cai na corrente sanguínea. O "r" vem de renal ou de rins, que ficam estropiados, sem fazer seu trabalho de filtrar como deveriam. O "a" se refere à anemia, pela falta de glóbulos vermelhos. Finalmente, o "b" é de bone, quer dizer, osso na língua inglesa. Feito um queijo suíço por causa do mieloma múltiplo, ele se quebra por qualquer bobagem.

O novo medicamento

Segundo o professor Mikhael, ao se encaixar na CD38 e em nada mais, o isatuximabe é um exemplo bem acabado do que os oncologistas chamam de terapia alvo. Como se fosse teleguiado, ele busca por essa proteína que parece saltar da superfície das células malignas na medula.

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"Quando se agarra nela, duas coisas podem acontecer", fala o professor. "Primeiro, só por se encaixar na CD38, o isatuximabe é capaz de matar diretamente a célula doente. Mas, talvez o efeito indireto seja ainda mais importante: ao se encontrar com a CD38, o isatuximabe envia um sinal que aciona o sistema imunológico como quem diz 'olha, achei um mieloma, venha atacar esse inimigo'. E assim outras células de defesa chegam perto para destruir a célula cancerosa."

O tratamento, vale repetir, vem sendo oferecido para quem não é candidato ao transplante de medula — ou seja, a mais de metade dos indivíduos com mieloma múltiplo. O professor Mikhael me conta, porém, que já existem estudos experimentando usar o "isa" com outros três medicamentos em pacientes que ainda passarão por esse procedimento, aumentado a chance de sucesso. Sucesso que, no caso, significa evitar a volta da doença, o que infelizmente não é tão incomum.

O hematologista se recorda que, observando os pais na infância — um casal de médicos que migrou do Egito para o Canadá —, ele sonhava em cuidar de pessoas extremamente doentes. E era o caso de quem tinha mieloma múltiplo há 25 anos, quando se interessou por esse câncer. "Na época, ninguém com esse diagnóstico sobrevivia mais do que um ano e olhe lá!", ele conta. Agora, quem tem mieloma múltiplo, especialmente se diagnosticado mais cedo, controla a doença por dez anos, em média. "E, quem sabe, será bem mais do que isso — e com qualidade de vida! — com a chegada desse anticorpo monoclonal", anima-se o médico.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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