Por que engordamos? Uma nova explicação sobre a origem da obesidade

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Você já deve ter ouvido o seguinte papo: nosso corpo tende a estocar qualquer tiquinho de energia na forma de gordura porque somos descendentes de homens pré-históricos que saíam para caçar e coletar alimentos. Ora, muitas vezes nossos ancestrais nem conseguiam voltar com a refeição para a caverna, muito menos tinham certeza de quando iriam encontrar comida outra vez.
Daí que sobreviviam às vacas magras apenas aqueles privilegiados que, na seleção imposta pela evolução das espécies, tinham um conjunto de genes capaz de favorecer o armazenamento de energia para quando faltasse alimento. Os que não contavam com a mesma sorte — a de guardar gordura — talvez morressem de fome.
Quem primeiro veio com essa história foi o geneticista americano James Neel, em 1962. E, nos últimos quarenta, cinquenta anos, com a explosão dos casos de obesidade, ela vem sendo recontada à beça.
É que faz mesmo muito sentido: em um mundo no qual você consegue que lhe entreguem o que faz sua boca salivar com um simples clique de celular, que exibe uma oferta de lanche em cada esquina e que, acima de tudo, tem supermercados com as gôndolas repletas de ultraprocessados, herdar uma genética com vocação para economizar calorias parece destinar o ponteiro da balança a subir até não poder mais. Esses genes não foram feitos para os nossos tempos. Há lógica, não?
"Só que os estudos modernos no campo da genética não encontram confirmação para essa hipótese", explica Mario Saad, professor do Departamento de Clínica Médica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Ele me lembra que a obesidade é uma doença poligênica, isto é, há centenas de genes por trás da sua manifestação. "Mas, examinando-os, praticamente nenhum deles tem a ver com o armazenamento de energia", garante.
É verdade que a hipótese da economia não é a única que vem sendo repetida para dizer por que engordamos. Existem pelo menos duas outras boas explicações. E, agora, o professor Saad — cujo nome brilha na lista do respeitado periódico PLOS Biology como um dos pesquisadores mais influentes do mundo — apresenta uma quarta ideia, a da metainflamação.
Segundo essa nova hipótese, na evolução das espécies sobreviveram aqueles indivíduos que tinham um sistema imunológico mais "marcante", no jargão dos cientistas. Ou seja, com células de defesa que não levavam desaforo para casa, totalmente ariscas, capazes de detonar com um agente infeccioso num triscar.
Não à toa, as populações que, hoje, têm maior tendência a engordar herdaram os genes de povos que praticamente foram dizimados por infecções. Quem sobreviveu a essas ameaças no passado remoto? Justamente aqueles sujeitos com genes que proporcionam o tal sistema imune marcante.
O artigo — publicado há menos de dois meses na revista da Endocrine Society, nos Estados Unidos — vai além. Tendo como coautor o biólogo Andrey Santos, também ligado à Unicamp, ele mostra como a microbiota pode ser o elo perdido, capaz de dar total sentido à nova proposta e a todas as anteriores, inclusive à da economia de energia.
Afinal, quem sabe o motivo de os cientistas não terem encontrado genes com mania de fazer poupança energética é porque estavam olhando para o genoma errado. Talvez esses genes econômicos não sejam nossos, mas das bactérias — e outros tipinhos — que nos habitam.
A hipótese da produção de calor
Também existe a teoria de que, no princípio, tudo seria uma questão de o corpo se manter aquecido. "Nossos antepassados que migraram para regiões mais ao norte do planeta enfrentaram o clima frio e talvez as baixas temperaturas tenham selecionado genes que favoreciam o gasto energético para gerar calor", explica o professor Saad. Daí que seus descendentes teriam menos risco de engordar, o que já não acontece com povos latinos, nem com nativos da América do Norte, africanos e habitantes das Ilhas do Pacífico, vivendo em regiões ensolaradas.
"Só que os estudos mais recentes da genética tampouco respaldam esse pensamento", informa o professor. E, de novo, é possível que os genes ligados à produção de calor estejam não em nós, mas na microbiota.
Genes à deriva
Há, ainda, a hipótese dos genes à deriva. Há mais de 1 milhão de anos, os ancestrais do Homo sapiens viviam fugindo de predadores. E, supostamente, os indivíduos mais pesados tinham maior dificuldade para dar no pé. Suas chances de enfrentar feras aumentaram quando descobriram o fogo e desenvolveram armas de pedra. Sem tanta necessidade de escapar correndo de predadores, a pressão evolutiva para se manter magro e leve desapareceu. Então, os genes que levariam o corpo a engordar ficaram à deriva, sem nada para segurá-los.
No entanto, o professor Saad faz a mesma crítica de vários de seus colegas: "A lógica diz que a obesidade, como toda característica que é muito prevalente nas populações, deve envolver genes que, durante um bom tempo, ofereceram uma vantagem evolutiva. E não, como prega essa teoria, genes que ofereciam uma desvantagem".
Obesidade e imunidade
"Sabemos que quanto mais forte a resposta a infecções do organismo, maior a probabilidade de ele ganhar peso", observa, ainda, o professor. Os genes explicam em parte o fenômeno: aqueles que são responsáveis pelo funcionamento do sistema imunológico também têm a ver com o acúmulo de gordura.
"Achávamos que um grande número de genes ligados à obesidade estava presente no sistema nervoso central, que governa o nosso balanço energético. E é fato. Mas pegamos 100 desses genes e notamos que eles também estão em células imunológicas, como macrófagos e neutrófilos", conta o professor.
E sabe qual tecido, depois do sistema nervoso, tem a maior quantidade de genes relacionados à obesidade? Aquele que dá origem às células sanguíneas. Logo, às de defesa. "Claro que não existiria obesidade se carregássemos esses genes, mas não houvesse o estímulo do ambiente", reforça o professor.
No passado, as infecções podem ter sido esse empurrãozinho externo — como os cientistas da Unicamp postulam. "Basta ver que, entre 1500 e 1600, cerca de 80% da população do México e do Peru desapareceram", exemplifica Mario Saad. "E isso, principalmente, porque esses povos não tinham uma boa resposta imunológica às doenças trazidas pelos europeus", comenta o pesquisador. Provavelmente, os indivíduos que continuaram vivos tinham um pacote genético que atiçava suas defesas — mas que, como se sabe agora, favoreceria o ganho de peso ao mesmo tempo.
"Hoje o estímulo externo é outro e vem do consumo desenfreado de alimentos ultraprocessados", pensa Mario Saad, impressionado ao assistir a um documentário sobre o movimento das Diretas no Brasil, nos anos 1980. "Só se via uma ou outra pessoa com obesidade nas manifestações", conta. Hoje, até isso é bem diferente.
E a microbiota na história?
Por muito tempo os cientistas se enganaram achando que o papel da genética da microbiota seria pequeno. Na realidade, ele é poderoso. A microbiota intestinal é formada por vírus, fungos, protozoários, arqueas e bactérias. Estas são mais numerosas e, de longe, as mais estudadas. "E a capacidade delas de se adaptarem ao ambiente é bem maior que a nossa", conta o professor.
Assim, se há pouco alimento disponível, nossas inquilinas podem sofrer mutações para transformarem substâncias, facilitando sua absorção e otimizando a obtenção de energia. É uma luz para aquela teoria da economia.
"Em relação à hipótese da termogênese, isso está bem esclarecido", revela o professor. "Para ter ideia, a microbiota de animais de laboratório, quando deixados em uma câmara fria a 4 graus Celsius por 15 dias, muda completamente. Ela se adapta no sentido de favorecer o aproveitamento de calorias pelo animal. Já no que diz respeito à nossa hipótese da metainflamação, sabemos que as bactérias que habitam o nosso intestino podem produzir moléculas, como peptídeos, que ajudam o sistema de defesa. Aliás, conforme a composição da microbiota, um indivíduo pode ter menor ou maior facilidade para lidar com infecções."
Os cientistas não sabem exatamente como a microbiota de uma pessoa pode ser transmitida para outra. Mas, sim, isso acontece! "Gente da mesma família tende a ter uma microbiota muito parecida", conta o professor. "E, aí, não só porque compartilha os mesmos hábitos. Filhos, por exemplo, têm uma microbiota muito mais parecida com a da mãe do que com a do pai. Um estudo com populações isoladas de Honduras levantou a suspeita de até mesmo beijos e abraços maternos transmitirem suas características."
Conselho de vó
Em um estudo realizado na Unicamp pelo grupo do professor com pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, aqueles que tiveram reganho de peso tinham uma microbiota bem menos diversificada do que aqueles que conseguiram sustentar o emagrecimento.
O fato é que tudo o que fizermos mudará pouco a nossa microbiota original, digamos assim. Ou seja, aquela que formamos nos primeiros três anos de vida. E como garantir uma microbiota que não provoque demais o sistema imunológico, nem leve à obesidade? "Dar preferência para o parto normal, amamentar, evitar o uso desnecessário de antibióticos, oferecer comida caseira e natural, tudo o que a sua avó fazia", diz o professor. É um investimento num futuro com menos obesidade.
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